É indiscutível que o Brasil possui características geográficas favoráveis ao transporte hidroviário interior, visto que o país possui uma rede fluvial e lacustre com 63 mil km de extensão, sendo quase 27 mil km de rios navegáveis e 15 mil km de vias potencialmente navegáveis, segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ).
Um levantamento da Confederação Nacional do Transporte (CNT) constatou que o Brasil utiliza somente 19 mil km de seus rios para o transporte comercial, de cargas e passageiros, extensão que corresponde a somente a 30% de toda sua rede fluvial. De acordo com a ANTAQ, dentro da matriz de transporte brasileira, estima-se que aproximadamente 5% das cargas são movimentadas por vias fluviais. Essa baixa participação tem relação com a histórica falta de investimentos no transporte fluvial, diante do tratamento prioritário conferido ao transporte rodoviário.
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Essa situação de subutilização do potencial fluvial decorre da infraestrutura deficiente na maior parte do país, excesso de burocracia, baixa efetividade de planos e programas governamentais, além dos poucos recursos financeiros investidos no setor, ao longo dos anos.
A maior parte do transporte fluvial brasileiro acontece no Arco Norte, região composta pelos estados de Roraima, Amapá, Amazonas, Pará e Maranhão, com grande logística portuária, onde está situada a maior bacia hidrográfica do mundo. Essa região da Amazônia possui cerca de 16 mil km de rios navegáveis, localizados em planaltos ou planícies, sem quedas d’aguas em seus percursos, que apresentam condições ideais para o incremento significativo do transporte fluvial de cargas.
Diante deste cenário, o Governo Federal idealizou um projeto de estímulo à navegação interior, de modo a promover e incentivar o transporte por meio das hidrovias brasileiras. O objetivo principal é atrair investimentos e ampliar a participação das hidrovias na matriz de transportes nacional, considerando a diminuta movimentação de cargas que o modal atualmente representa frente aos demais.
Esse projeto foi alavancado perante o Governo Federal em 2020, inspirando-se no Projeto de Lei nº 4199/2020, conhecido como “BR do Mar”, encaminhado ao Congresso Nacional através do Ministério da Infraestrutura, cujo escopo visava incentivar, aumentar a competitividade e impulsionar o transporte marítimo de cabotagem no Brasil.
Havia uma promessa de que, até o final de 2023, o projeto de regulamentação e incentivo ao transporte aquaviário, o “BR dos Rios”, seria finalizado. No entanto, o Ministério de Portos e Aeroportos e a ANTAQ ainda trabalham conjuntamente para definir a estruturação e as linhas estratégicas do programa antes do encaminhamento ao Congresso.
Os rumores e as expectativas acerca da finalização do projeto aumentaram nos últimos meses em razão de alguns acontecimentos que esbarram no tema. O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho estabeleceu que sua gestão terá como prioridade o desenvolvimento do transporte aquaviário. Em abril de 2024, por meio do Decreto nº 11.979, o Ministério oficializou a concretização de seu desejo, criando a Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação (SNHN), com o principal objetivo de impulsionar o desenvolvimento do transporte aquaviário no Brasil, explorando o potencial hidroviário nacional e integrando os setores de navegação marítima e interior. A criação da SNHN é vista como um marco para o desenvolvimento do transporte aquaviário no Brasil e, não por acaso, será a protagonista dos próximos passos do projeto “BR dos Rios”, finalizando a estruturação do programa e encaminhando ao Congresso Nacional para discussão e votação.
A existência da Secretaria é fundamental para a criação e implementação de políticas públicas, até então, pouco eficientes. Isso porque, desde o início do século XXI, tanto as cheias quanto as secas na Amazônia se potencializaram, passando a ser mais severas e com menos espaçamento entre as ocorrências, afetando, assim, o volume dos rios e a regulação do ciclo hidrológico. Nos últimos anos, foram registrados nove eventos de cheias severas, mesmo número em todo o século passado. O desmatamento e as queimadas também contribuem para essa conjuntura.
A estiagem no Rio Amazonas vem preocupando empresas de cabotagem diante de seu impacto, até mesmo nas movimentações realizadas perante o Porto de Santos. Em 2023, as consequências da seca foram bastante negativas para o porto, que deixou de receber mercadorias da Zona Franca de Manaus, prejudicando a distribuição dos produtos para o restante dos estados. Essas empresas temem que essa estiagem seja tão severa quanto a passada, paralisando a entrada e saída de navios de grande porte no Rio Amazonas. Contudo, o Ministério de Portos e Aeroportos afirma que medidas estão sendo tomadas para minimizar os impactos da seca dos rios em Manaus.
De acordo com o Governo Federal, as iniciativas para o melhor aproveitamento das hidrovias já são uma realidade, na medida em que existem projetos concretos voltados à dragagem de hidrovias relevantes para o transporte marítimo, que, anualmente, são impactadas pela estiagem, especialmente na Região Norte, nos Rios Amazonas e Solimões.
Considerando os altos custos para o desenvolvimento da infraestrutura fluvial, o Governo, com o objetivo de obter recursos privados para o desenvolvimento hidroviário, pretende realizar, ao menos, cinco leilões de concessões hidroviárias para aprimorar o desenvolvimento do modal de transporte de cargas e passageiros pelas águas fluviais do país. Inclusive, já está prevista a publicação de edital para a concessão da Hidrovia do Madeira, que compreende partes dos estados do Amazonas e de Rondônia, para dezembro de 2024. Com uma maior participação da iniciativa privada na gestão e nos investimentos, confia-se que o desenvolvimento e manutenção das hidrovias serão implementados de forma mais rápida e eficiente.
Além do incremento de viabilizar a maior movimentação de cargas e pessoas, a ampliação do transporte hidroviário seria um dos principais meios para alcançar um dos compromissos assumidos pelo Brasil na COP21, relativos ao setor transportador, que é a redução da emissão de gases efeito estufa, visando a minimização dos impactos ambientais do transporte. Segundo, ainda, a CNT, dentre as diversas modalidades, o aquaviário é o mais sustentável, principalmente para percursos de longas distâncias. Comparativamente, o transporte aquático é o que tem menos emissões de gases poluentes. De acordo com estudo feito pela ANTAQ, o meio hidroviário consome somente 26% do combustível necessário pelo rodoviário, considerando mesmo volume de carga e distância percorrida.
Conclui-se, portanto, que o projeto conhecido como BR dos Rios, além de impulsionar a economia do país com a possibilidade de maior movimentação de carga e pessoas, com menor custo, está em linha com os compromissos assumidos na COP21. Ademais, por meio da exploração do grande potencial fluvial do país e do incentivo ao desenvolvimento da navegação interior, espera-se uma significante redução na produção de gases poluentes por transportes, e, consequentemente, com impacto ambiental extremamente positivo diante do cenário de secas e cheias.
Bernardo Mendes Vianna, Erika Feitosa Chaves e Bernardo da Motta Santana são, respectivamente, sócio e associados da área Marítima do Vieira Rezende Advogados