O temor no início do ano de que o Brasil pudesse enfrentar uma fuga de investidores em decorrência das incertezas globais, que levam os agentes econômicos a se proteger do risco, se dissipou no decorrer de março, como efeito colateral – e paradoxal – da guerra da Ucrânia e a consequente valorização das commodities agrícolas e minerais. O receio era reforçado pelo aumento dos juros pelo FED (Banco Central americano), como forma de combater a inflação, que chegou a 7,5% ao ano nos EUA, a maior taxa no país desde 1982, época do segundo choque do petróleo.
As incertezas persistem, porém, o aumento dos juros nos EUA, atraindo capitais para uma remuneração segura, encontrou um paralelo no Brasil, e pelas mesmas razões: aumento da Selic pelo BC a fim de reverter expectativas inflacionárias. Como resultado, houve significativo aumento da entrada de dólares no país, razão pela qual o real se tornou uma das moedas que mais se valorizaram em 2022.
PUBLICIDADE
A valorização das commodities, por outro lado, fez com que a Bolsa de Valores brasileira (B3) se tornasse um dos destinos preferidos do mercado de capitais global. Nos três primeiros meses do ano, o saldo entre entradas e retiradas na B3 foi de R$ 93 bilhões, muito perto do valor total de 2021 (R$ 104 bilhões), com ingresso médio diário de R$ 1,3 bilhão, de acordo com reportagem do "Estado de S. Paulo".
Em meio a essa importante dinâmica financeira, que melhora as perspectivas para o ano, o governo promoveu na quarta-feira (30/03) a mais arrojada rodada de leilões de privatização portuária da era republicana desde a “primeira” Lei dos Portos (Lei 8.630/1993), não exatamente pelos valores envolvidos – que por si só não são desprezíveis –, mas pela mudança de paradigma, com a inauguração de uma nova modelagem jurídica para o setor.
Nos leilões, realizados em sessão na B3, foram concedidos à iniciativa privada a Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa), englobando os Portos de Vitória e Barra do Riacho, e mais três terminais: um de grãos no Porto de Santos (Terminal STS 11); um de carga geral no Porto de Suape (Terminal SUA 07), em Pernambuco; e um de granel no Porto de Paranaguá (Terminal PAR 32), no Paraná. Essas concessões totalizam mais de R$ 170 milhões em outorgas (pagamentos ao Tesouro), além de contribuições variáveis sobre as receitas ao longo de 25 anos de contrato, prorrogáveis por mais cinco.
Os investimentos em modernização e ampliação contratados são da ordem de R$ 1 bilhão, ao longo do prazo de concessão, somando projetos no âmbito da Codesa e nos outros três terminais leiloados. Entre os novos controladores, há investidores nacionais e estrangeiros, caso do grupo chinês Cofco, que arrematou o terminal santista sem concorrentes. No caso da disputa pela Codesa, vencida pela Quadra Capital, por meio de um Fundo de Investimento e Participações (FIP), superando o consórcio formado por Vinci Partners e Serveng, os aportes serão bem mais significativos.
Além da outorga de R$ 106 milhões, a Quadra Capital desembolsará R$ 327 milhões pelas ações da Codesa, arcará com R$ 520 milhões em custo de manutenção e investirá R$ 335 milhões em obras no decorrer da concessão. Mais do que pelas cifras, o leilão foi emblemático pela mudança da modelagem jurídica. A transferência da Codesa à iniciativa privada inaugura no Brasil um terceiro e inédito modelo de administração portuária, denominado Full Privatize Port, pelo qual o grupo adquirente se responsabiliza tanto pela infraestrutura quanto pela superestrutura do Porto Organizado (público), sem qualquer participação ou interferência do ente público, salvo indiretamente pelas normas regulatórias.
O Full Privatize Port a rigor significa a desestatização da própria “Autoridade Portuária”. O modelo é pouco utilizado no mundo, tendo em vista a importância dada pelos Estados ao controle de entrada e saída de mercadorias em seu território. Mas é também visto por muitos especialistas como o instrumento mais eficaz de se promover uma célere modernização de grandes estruturas portuárias. Deverá ser o modelo das privatizações da Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), responsável pelo Porto de Santos, e da Companhia Docas de São Sebastião (CDSS), em leilões previstos para serem realizados ainda este ano.
Nas concessões de terminais em portos públicos no Brasil, prevalecia até hoje o conceito de Landlord Port, a exemplo do que ocorre na maior parte dos países. Por esse modelo, o governo permanece responsável pela infraestrutura (as áreas comuns do chamado Porto Organizado público), cabendo ao setor privado a administração da superestrutura, abrangendo máquinas e equipamentos, bem como o gerenciamento de pessoal e o controle da operação propriamente dita. Esse é o caso dos terminais sob concessão nos Portos Organizados (públicos) brasileiros, inclusive nos de Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá e Salvador, entre outros. O governo é a Autoridade Portuária e se responsabiliza pela infraestrutura, enquanto o concessionário se encarrega da superestrutura (equipamentos) e da operação em si.
Introduzido pela primeira Lei dos Portos (Lei 8.630/1993), o Landlord Port propiciou a modernização e a ampliação da infraestrutura portuária do país, graças aos pesados investimentos feitos nas últimas três décadas por diferentes concessionários em dezenas de terminais nos nossos principais portos. Representou um grande salto em relação a um modelo arcaico, o Service Port, em que o governo se responsabiliza pela infraestrutura e operação, e é pouco utilizado no mundo, ou mesmo o Tool Port, pelo qual o Poder Público mantém o controle delegando apenas parte da operação à iniciativa privada.
Porém, no Brasil, a rigor, o arcabouço que regulamenta a atividade portuária é híbrido, uma vez que, paralelamente aos terminais sob concessão em portos públicos, existem os terminais eminentemente privados, os chamados Terminais de Uso Privado (TUPs). Essas estruturas, disciplinadas pela “nova” Lei dos Portos (Lei 12.815 de 2013), decorrem da implantação de terminais em terrenos de propriedade privada, fora dos Portos Organizados, e que passam a operar em regime de autorização, sob condições estabelecidas pela agência reguladora.
Com a introdução do modelo Full Privatize Port no leilão da Codesa, a questão é saber se o aprofundamento desse hibridismo trará os resultados esperados, ou seja, uma aceleração na modernização do setor. Um grande desafio será o de compatibilizar a “convivência” dos dois modelos nos Portos Organizados a serem inteiramente passados à iniciativa privada e onde já existem terminais sob concessão, sobretudo tendo em vista os interesses potencialmente conflitantes entre os atuais concessionários, com direitos adquiridos, e o novo controlador de toda a infraestrutura. Esse será o caso da Codesp, responsável pelo Porto de Santos, onde operam, sob concessão, alguns dos maiores terminais da América Latina.
Uma coisa é certa: a partir dessa nova “arquitetura” jurídica para a desestatização, não se poderá culpar o governo pela falta de ousadia – o que não lhe garante isenção por um eventual aumento da judicialização do setor. De qualquer forma, a manutenção dos investimentos nos portos ganhou uma garantia a mais com a renovação do Reporto – o Regime Tributário de Incentivo à Modernização e à Ampliação da Estrutura Portuária. Isso foi possível graças à derrubada pelo Congresso, no último dia 25, do veto presidencial à prorrogação do regime especial.
O Reporto foi instituído em 2004 e vinha sendo renovado a cada cinco anos, até dezembro de 2020, quando expirou e não teve mais prorrogação. Inserido no PL 4.199 de 2020, de estímulo à cabotagem (conhecido como BR do Mar, convertido na Lei 14.301/2022), sua prorrogação é fundamental para que os vultosos investimentos do setor, projetos financeiramente complexos, se concretizem. O regime suspende a cobrança de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), do Imposto de Importação (II), de PIS e Confins, além de dar outros benefícios tributários, na compra de equipamentos para investimentos em portos e ferrovias.
No caso do Imposto de Importação, a suspensão é dada quando não houver similar nacional. Sem o regime, os investimentos no setor portuário tornam-se até 30% mais caros, comprometendo todo o planejamento de longo prazo. Vários projetos ficaram paralisados no último ano à espera de uma definição. O veto presidencial à sua prorrogação dentro do BR do Mar teve como justificativa o risco de inconstitucionalidade em função de uma renúncia fiscal com impacto orçamentário e sem previsão de receita compensatória.
Com a derrubada do veto pelo Congresso, o risco de inconstitucionalidade deixou de ser um problema do Executivo. Do ponto de vista prático, a prorrogação é sem dúvida um fator de desenvolvimento dos portos. Na verdade, o sucesso das desestatizações nos portos em grande medida depende de um regime de incentivos como o Reporto.
Nilson Mello é diretor da Meta Consultoria e Comunicação