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Artigo - Navegação nas atividades de geração de energia eólica offshore - breves comentários jurídicos

I. Introdução
A indústria das eólicas offshore tem dado os seus primeiros passos no Brasil. A tramitação do Projeto de Lei n.º 576/2021 no Congresso Nacional e a publicação do Decreto n.º 10.946/2022, cumuladas com crescentes investimentos em estudos na área, têm dado ao mercado a esperança de um início a uma nova geração de diversificação da matriz energética no Brasil, acarretando, consequentemente, em novas oportunidades de investimentos.

Apesar deste aquecimento no mercado, pouco se fala do inerente e fundamental papel da navegação nas operações de instalação e manutenção dos parques de geração de energia eólica offshore. Como será tratado adiante com maior detalhamento, a legislação brasileira dispõe sobre os tipos de navegações, enquadrados de acordo com as atividades prestadas por cada embarcação. Essa classificação é utilizada tanto para fins do Registro Especial Brasileiro de embarcações (“REB”) quanto para a aplicação de regulações específicas elaboradas e aplicadas por autoridades reguladoras diversas. Com isso, armadores e outros agentes da indústria passaram a se indagar quais seriam os possíveis enquadramentos e regramentos regulatórios das embarcações utilizadas em apoio à prática eólica offshore.

O primeiro indício de discussão acerca do enquadramento da navegação nas operações de geração de energia eólica offshore no Brasil foi iniciado em 2022 perante a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Tratou-se de consulta realizada pela Navium Engenharia acerca da possibilidade de internalização de embarcações estrangeiras com características específicas utilizadas nas operações de instalação das usinas eólicas offshore1.

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Naquela oportunidade, dentre todos os esclarecimento prestados pela Antaq, o entendimento firmado pelo então Acórdão nº 499/2022 foi de que as embarcações utilizadas nas operações de exploração e desenvolvimento da atividade eólica offshore deveriam ser enquadradas na tipologia da navegação de apoio marítimo para fins do REB.

Dado a sensibilidade do tema para as indústrias naval e da energia no Brasil, o diretor-revisor Eduardo Nery fez sua acertada e cautelosa contribuição ao complementar o voto do diretor-relator José Renato Ribas, evidenciando que o entendimento da Antaq naquele caso deveria “se restringir ao caso concreto, não caracterizando, portanto, entendimento quanto à definição do tipo de navegação realizado pelas embarcações que atuam no apoio às operações voltadas à implantação de parques eólicos offshore, tendo em vista que, conforme colocado, o assunto deverá ser devidamente aprofundado no âmbito da ANTAQ”2.

Neste sentido, o posicionamento acima já continha os indicativos de qual seria a linha de entendimento adotada pela Antaq acerca do enquadramento regulatório da navegação no cenário das eólicas offshore e também de que o tema seria eventualmente revisitado pela agência em algum momento.

Com isso, ainda em 2022, a Antaq deu início ao estudo regulatório aprofundado sobre o papel da navegação e do setor portuário na geração de energia eólica offshore3. Como produto de tal estudo, foi prolatado o Acórdão n.º 434/2023, publicado no Diário Oficial da União do dia 08.09.2023.

II. O Acórdão nº 434/2023 e o enquadramento das embarcações nas operações de geração de energia eólica offshore

O Acórdão nº 434/2023 foi dividido entre o viés portuário e da navegação, sendo este último o objeto de análise deste artigo.

A conclusão chegada pela Diretoria da Antaq foi, basicamente, de que as embarcações utilizadas na indústria das eólicas offshore deverão ser enquadradas como navegação de apoio marítimo, excetuando-se dessa classificação as embarcações de engenharia e dragagem, sendo estas últimas aquelas utilizadas, sobretudo, na etapa de implantação das usinas eólicas offshore.

A decisão, por um lado, aliviou a insegurança do mercado quanto ao enquadramento das embarcações de engenharia. Isto porque, em meados de 2022, a Antaq havia prolatado o Acórdão n.º 604/2022, buscando a consolidação do entendimento da agência no sentido de admitir todas as regras de circularização e bloqueio atinentes ao afretamento de embarcações de apoio marítimo às embarcações de engenharia (e.g., PSLVs, RSV, DSV e etc)4. No entanto, este novo entendimento fixado pelo Acórdão nº 434/2023 parece não seguir nesta linha, haja vista ter afastado categoricamente o enquadramento das embarcações de engenharia offshore e dragagem do conceito de apoio marítimo, ao menos em relação aos projetos de implantação das usinas eólicas offshore.

Por outro lado, a decisão assumiu uma interpretação extensiva do conceito de navegação de apoio marítimo trazido pela Lei n.º 9.432/1997, como será explorado a seguir.

III. Os tipos de navegação vigentes (Lei n.º 9.432/1997) e as normas de afretamento

A Lei nº 9.432/1997 foi elaborada no cenário de forte crescente do setor naval e da indústria do petróleo e gás no Brasil. Tendo como seu principal objetivo dispor sobre a ordenação do transporte aquaviário em águas jurisdicionais brasileiras, a Lei nº 9.432/1997, dentre outras providências, criou o REB, disciplinou as espécies de afretamento e ainda definiu os tipos de navegação.

Ficaram definidos pela referida norma legal os seguintes tipos de navegação: (i) navegação de apoio portuário; (ii) navegação de cabotagem; (iii) navegação interior; (iv) navegação de longo curso; (v) navegação de travessia; e (vi) navegação de apoio marítimo.

A primeira rubrica é definida como a navegação utilizada exclusivamente no apoio logístico e operacional aos terminais portuários e suas instalações. A cabotagem consiste nas viagens realizadas entre portos de um mesmo território, enquanto a navegação de longo curso é “realizada entre portos brasileiros e estrangeiros”5. Já a navegação interior é aquela reservada aos rios e canais interiores, sejam esses nacionais ou internacionais. A navegação de travessia, por sua vez, é realizada entre rios, canais ou 2 pontos das margens de lagos, lagoas, baías, angras e enseadas, em extensões inferiores a 11 milhas náuticas.

Finalmente, temos a navegação de apoio marítimo, principal objeto de análise deste artigo. A navegação de apoio marítimo representa papel essencial e exclusivo nas atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural. O grifo da exclusividade exercida por este tipo de navegação se dá por um simples e único motivo: a Lei nº 9.432/1997 atribuí, taxativamente, o apoio marítimo ao “apoio logístico a embarcações e instalações em águas territoriais nacionais e na Zona Econômica, que atuem nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos”6.

Ou seja, além de segmentar o apoio marítimo a um tipo de serviço específico (i.e., apoio logístico offshore), a legislação pertinente também é taxativa quanto a finalidade destes serviços, que devem ser prestados, necessariamente, em suporte às operações de exploração e produção de minerais e hidrocarbonetos. Por esse viés, seria evidentemente inadequado assumir que a geração de energia eólica offshore pode ser interpretada como uma atividade de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos. No entanto, a grande questão são as normas de afretamento da Antaq atinentes à navegação de apoio marítimo que, considerando o entendimento firmado pela agência no Acórdão n.º 434/2023, precisariam ser seguidas no contexto das eólicas offshore.

A Antaq possui regulamentações específicas para o afretamento de embarcações estrangeiras, visando, sobretudo, a proteção da bandeira nacional. Temos, a título de exemplo, a regra de circularização, que é aplicável quando uma empresa brasileira de navegação (“EBN”) pretende afretar uma embarcação estrangeira. Nestes casos, a circularização consiste na consulta da disponibilidade de embarcações nacionais que atendam aos requisitos exigidos para o afretamento pretendido pela EBN. Nas hipóteses em que uma embarcação estrangeira for de fato afretada, temos também a possibilidade do procedimento de bloqueio de circularização da embarcação, que ocorre quando uma embarcação brasileira com os requisitos de afretamento similares àquele buscado pela EBN é oferecida em substituição à embarcação estrangeira.

As regras para o afretamento de embarcações estrangeiras são ainda mais restritivas ao se tratar das embarcações de apoio marítimo, que podem ser afretadas tão-somente em hipóteses que (i) se verifique a indisponibilidade ou inexistência de embarcações nacionais do tipo e porte adequados, nos prazos consultados, admitindo-se ainda o bloqueio parcial; ou (ii) seja realizado o afretamento por tempo (prazo mínimo de 6 meses podendo acumular no máximo 36 meses) ou o afretamento a casco nu (sem limitação de prazo mínimo), quando houver embarcação similar em construção em estaleiro nacional7.

Tal proteção é viável para o mercado naval brasileiro que já é consolidado no que tange às embarcações de apoio logístico às operações de petróleo e gás, onde temos hoje grandes armadoras que atuam no setor, fazendo-se, de certa forma, congruente as medidas de proteção de bandeira para a navegação de apoio marítimo, interpretada no sentido estrito da Lei nº 9.432/1997.

Ocorre que, de acordo com este entendimento da Antaq, caso não tenhamos atualizações normativas, seja da RN nº 01/2015, seja da Lei nº 9.432/1997, as embarcações utilizadas nos projetos de eólicas offshore deverão seguir estes mesmo ritos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações que exercem de fato a navegação de apoio marítimo nos termo do art. 2º, inciso VIII da Lei nº 9.432/1997.

Desse modo, a legislação e regulação brasileira ainda não possui uma definição exata e específica para o enquadramento da navegação em apoio às unidades eólicas offshore. O posicionamento da Antaq parece “cobrir o buraco” da Lei nº 9.432/1997 como forma de incentivar o início destes projetos sem a necessidade de uma eventual e prolongada alteração legislativa.

IV. Conclusão

Portanto, caso de fato não haja atualização legislativa ou reguladora de forma a tratar da navegação em atendimento às atividades de eólicas offshore de maneira específica, a preocupação que fica por parte de alguns players e investidores é se o mercado naval brasileiro terá disponibilidade suficiente de embarcações nacionais para atender ambas as indústrias.

Caso negativo, seria importante a avaliação de eventual flexibilização da internalização e afretamento de embarcações estrangeiras de modo a evitar o superendividamento de armadores brasileiro que buscariam cada vez mais financiamentos para a construção de novas embarcações especializadas em atendimento aos projetos de geração de energia eólica offshore. Adicionalmente, ressalta-se que os procedimentos de circularização e eventuais bloqueios gerariam um significativo atraso nos projetos (o que já foi experienciado pela indústria do petróleo e gás), tornando o cenário não muito atrativo para investidores e desincentivando uma eventual diversificação da matriz energética no Brasil.

Outra possível alternativa seria o surgimento de programas de incentivos à indústria naval brasileira para construção de novas embarcações, o que não parece ser um cenário distante, considerando o posicionamento da nova presidência da Transpetro acerca de uma política de Estado ao longo prazo para fortificar a indústria naval brasileira8.

Por fim, importante acrescentar que o cenário descrito acima ainda é incerto, tendo em vista que o Brasil ainda não experienciou os projetos de eólicas offshore na prática. Tratam-se apenas de algumas considerações que seriam importantes se levadas em consideração pelo legislador e regulador no futuro próximo.

1 Processo SEI ANTAQ nº 50300.002301/2022-85
2 Vide Voto do Revisor-EN (SEI n.º 1684187)
3 Processo SEI ANTAQ nº 50300.020618/2022-01
4 Processo SEI ANTAQ nº 50300.000236/2023-34
5 Lei n.º 9.432/1997, art. 2º, inciso XI
6 Lei n.º 9.432/1997, art. 2º, inciso VIII
7 Resolução Normativa ANTAQ n.º 01/2015, art. 5º, inciso I, alíneas a) e b).
8 Desde a posse do novo presidente da Transpetro, Sérgio Bacci, muito tem se falado na fortificação da indústria naval nacional. Bacci chegou a mencionar e sugerir novas linhas de créditos acessíveis, regras adequadas de conteúdo local e, recentemente, anunciou um novo edital em janeiro de 2024 para construção de 25 navios. Fonte: (Transpetro lança em janeiro edital para construção de 25 navios | Agência Brasil (ebc.com.br))

PierottiRafael Pierotti - é bacharelando em Direito, fundador e presidente da Liga de Direito Marítimo Ibmec (LDM Ibmec)



Yanmar

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