Parte 2
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As lições da Tragédia do Chapecoense
• Qual a importância de tal acordo e da outorga? Na tragédia com o time Chapecoense, que viajava em vôo da empresa Lamia Corporation, da Bolívia, há um acordo bilateral entre os países, contudo, não prevê operações com a solicitada, razão pela qual o vôo não foi autorizado pela Anac.
O modelo de regulação setorial, por determinação constitucional, implica a outorga (conferir poder) por meio de autorização, permissão ou concessão. No setor de transporte marítimo de longo curso, a autorização é o instituto adotado, inclusive para empresas brasileiras de navegação (EBN´s). A outorga passa a ser um ativo relevante para o transportador nacional ou estrangeiro de qualquer modal.
Para um transportador estrangeiro operar no Brasil é preciso, portanto, um acordo bilateral entre o Brasil e o país da empresa de transportes, bem como uma autorização para a empresa operar no país. As operações dessa empresa devem ser executadas em regime de reciprocidade, tal como a Anac faz no transporte aéreo, e que proibiu a empresa Lamia de fazer o vôo diretamente do Brasil, com embarque em São Paulo, para a Colômbia. Infelizmente, os usuários resolveram, embarcar na Bolívia, e o restante da história todos sabem.
No setor regulado pela Antaq, a sua Diretoria insiste em permitir que empresas de navegação marítima estrangeira operem seus navios sem acordo bilateral e sem outorga. Sem acordo bilateral, o Estado regulador jamais regulará para valer. Obviamente que tal política deverá ser discutida e não implementada em curto espaço de tempo. É preciso que tenha regras de transição de um regime para o novo regime.
Empresas brasileiras de navegação, como a Posidonia, que lutam para atuar na cabotagem, com as barreiras de entrada criadas pela Resolução Normativa n. 1/2015, se mantido o modelo atual (sem outorga ao transportador marítimo estrangeiro), continuarão sofrendo concorrência desleal, diante da violação da isonomia em relação ao armador estrangeiro. Este problema foi alertado, inclusive, no parecer do Dr. Joaquim Barbosa.
Nesse ambiente péssimo de negócios, os usuários dos transportes marítimos e os terminais portuários, especialmente os não verticalizados (sem armador como acionista), dentre os quais os TUPS, também terão problemas: sofrerão com os abusos, inclusive de posição dominante, e impunidade nas inadimplências de poucos transportadores, especialmente os navios tramp.
Isto ocorrerá tão somente se mantido o texto como está, vez que ambos continuarão a sofrer as externalidades negativas das assimetrias decorrentes da falta de poder dissuasório do Estado brasileiro via Antaq.
A outorga é um instrumento relevante, porque somente através dela, e não por meio de um simples cadastro (CATE), é possível dissuadir o mau prestador de serviço de práticas abusivas. Sem a possibilidade de suspensão de outorga ou até mesmo a cassação, que é a medida mais drástica, pela impossibilidade de operar no mercado, não há regulação eficaz.
A regulação do transportador marítimo estrangeiro no Regulamento Marítimo proposto (Resolução n. 5.032/2016)
Ocorre que, embora o texto tenha avanços em relação à Resolução n. 4.271/2015, a Antaq insiste em ficar sem poder dissuasório ao descumprir a Constituição Federal, por não exigir do armador estrangeiro a outorga de autorização para operar no Brasil.
Esta posição ficou clara na audiência pública realizada no dia 23 de novembro, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, onde a Antaq se colocou a favor de aumentar o valor da multa, mas sem outorga, o que possibilitaria a suspensão e até a cassação da outorga, o que não se pretende, mas precisa estar na norma, como forma de dissuasão.
Ao contrário do que fazem a Anac e a Antt em relação às empresas de transporte internacional de cargas e passageiros, que operam no Brasil somente com outorga, a Antaq decidiu, de forma simplista, para não dizer simplória, ao exigir um cadastro – CATE, nos termos do art. 2º, inciso da citada norma, ora transcrito:
Art. 2º Para os efeitos desta Norma são estabelecidas as seguintes definições: (...)
VI - cadastro de transportador marítimo estrangeiro – CATE: formulário informatizado disponibilizado pela ANTAQ em sua página na internet, que contempla as operações da navegação de longo curso com origem ou destino em portos brasileiros, destinado ao preenchimento pelo transportador marítimo efetivo, por agente marítimo que o represente ou mandatário – identificado pelo nome e registro no CPF ou CNPJ/MF, complementado com endereço, número de telefone e endereço eletrônico (e-mail) –, informando o tipo de carga transportado e o volume de carga transportado por mês nos dois semestres civis anteriores, e o clube de Proteção e Indenização (clube de P&I – Protection and Indemnity club) vinculado, com a data de cobertura do seguro;
Para os que estudam regulação setorial independente, uma das funções principais de uma agência reguladora é exercer poder dissuasório, o que é feito, dentre outras formas, por meio de fiscalização e sanção eficaz.
A mera indicação de um Clube de P & I, também não traz segurança jurídica, porque sabemos, como há cerca de 70% tpb registrada em bandeiras de (in)conveniência (veja meu livro Marinha Mercante Brasileira, publicado pela Aduaneiras, 2014), há alguns armadores inescrupulosos que “desaparecem”, dando uma "rasteira", como se fala na gíria marinheira, nos seus fornecedores, agentes, usuários e, especialmente, credores.
Esta estratégia faz com que tais clubes os excluam da sua carteira, deixando os demandados, especialmente agentes intermediários em países de débil regulação como o Brasil, a ver navios.
Aqui, alguns pressupostos da ciência econômica são relevantes, porque essa teoria parte da premissa que o agente econômico é racional. Ela também considera uma definição particular da racionalidade humana – a de que o homo economicus age, em regra, para maximizar a sua utilidade.
Vale dizer, dados dois cursos de ação alternativos, a análise econômica do direito conclui que o agente adotará aquele que, à luz das informações que possui no momento da decisão, trará o maior benefício esperado a ele, medido em termos de bem-estar.
Daí se extraí o conceito de dissuasão da norma regulatória, como aquele efeito que reduz ou elimina o benefício esperado da violação da norma (deixar de efetuar o cadastro - CATE) e, portanto, a sua prevalência.
Nesse passo, se mantido o texto como está, o armador estrangeiro (obviamente que somente aqueles prestadores de serviços com defeito) continuará prejudicando as EBN´s, os agentes intermediários (mandatários, que não fazem do mesmo grupo econômico do transportador estrangeiro) e os usuários com suas práticas. Vejamos o art. 29, inciso II, da citada norma:
Art. 29. Constituem infrações administrativas de natureza leve:
II - deixar – o transportador marítimo efetivo estrangeiro que opera na navegação de longo curso com origem ou destino em portos brasileiros – de efetuar o cadastro no CATE ou de manter atualizadas as informações correspondentes: advertência ou multa de até R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais);
Ocorre que, se um armador não efetuar o CATE, e for denunciado, poderá sofrer sanção de até R$ 50 mil e ainda discutir a legalidade da punição na esfera judicial (até 3 instâncias). Tal valor está muito longe de inibir um player transnacional qualquer conduta abusiva. A receita que esse terá com tal violação é (será) bem maior do que o valor da multa.
Assim, é preciso avançar, observando-se a dosimetria da pena, a razoabilidade e a proporcionalidade. Obviamente que o poder dissuasório só se aplica aos maus prestadores de serviços. O bom prestador de serviço não tem medo do poder dissuasório, aliás, defende-o, porque privilegia a meritocracia e a concorrência.
Por fim, parece-me que é urgente que o regulador conheça melhor o setor, bem como a análise econômica do direito, para entender que tal sanção, distante de uma multa maior, de uma suspensão e até da cassação da outorga (hard decision), não equilibrará o setor. A experiência, desde a criação da Antaq, mostra que a impunidade tem sido a regra, especialmente quando o principal prestador de serviço no setor regulado pela Antaq não é alcançado pela regulação setorial com eficácia.
Apesar da pressão de diversas entidades para que fossem inseridas normas de proteção do usuário, o texto ainda está muito aquém do razoável para que haja efetividade no poder punitivo da Antaq, especialmente em relação ao armador estrangeiro. Sem dissuasão, tout court, não haverá previsibilidade e modicidade, princípios insculpidos e buscados nos normativos da Nova Antaq.
Entre o texto inicial proposto, as sugestões feitas na última audiência pública do Regulamento Marítimo (suspensa) e o que foi disponibilizado (após a sua reabertura), é notável o risco a que estarão sujeitos EBN´s, usuários, rebocadores, práticos, agentes intermediários, terminais portuários (não verticalizados) e operadores portuário, em caso de não pagamento pelos serviços prestados ou de danos causados ao meio ambiente e a tais prestadores de serviços, todos regulados pelo Estado brasileiro.
Em que pese o esforço da Antaq, há outros problemas na norma, por exemplo, um dos maiores custos dos usuários – sobre-estadia de contêiner – não foi regulado como deveria, no sentido de evitar cobranças com valores várias vezes superior ao do próprio contêiner.
Como está, sem poder dissuasório, não tenho dúvidas que a indústria da demurrage continuará e a judicialização (com as cobranças dos transportadores) será a regra. O dinamismo do comércio exterior não perdoa os governos dos países negligentes com a proteção dos seus interesses.
É preciso que o importador e exportador deixem de apagar incêndios, e se preocupem com o futuro das suas operações (visão prospectiva e preventiva). Caso não contribuam para o normativo da Antaq, acima mencionado, até o dia 09.11.2016, os usuários poderão continuar abandonados no mar e as EBN´s sem navios e sem mercado.
Em conclusão, está nas mãos da Diretoria atual da Antaq, sob a condução do seu Diretor-Geral Adalberto Tokarski (entusiasta do transporte hidroviário interior), a opção para fazer história ao decidir por uma regulação que privilegie o interesse público nos serviços de transporte marítimo internacional prestados quase 100 % por operadores estrangeiros, razão de existência da regulação setorial.
Será que a atual Diretoria da Antaq acredita que exercerá seu poder dissuasório em relação à defesa do interesse público com um simples cadastro de transportador marítimo estrangeiro? Ou com a aplicação de uma advertência ou de multa de até R$ 50 mil, caso o transportador não o faça? Será que a atual Diretoria acredita realmente que a exigência de uma outorga afastará o transportador marítimo estrangeiro do fabuloso mercado de fretes brasileiro?
Nesse ponto, acredito que olhar para fora (por exemplo, a regulação do shipping nos EUA, objeto das minhas pesquisas de Pós-Doutorado no Center for Business and Government da Harvard University em 2007-2008), onde diversas empresas e seus executivos, que operam lá e aqui, continuam a operar no mercado.
Isto se deu, contudo, após efetuarem o pagamento de pesadas multas à Divisão Antitruste, inclusive com alguns dos seus executivos presos (regime fechado) por violação da defesa da concorrência, porque prejudicaram os usuários norte-americanos, embora eu seja contrário aos excessos da criminalização da atividade empresarial.
A história da regulação setorial dos transportes no mundo é a história da afirmação dos direitos dos usuários em face dos direitos do poder econômico, do poder estatal, da quebra de barreiras de entrada impostas pelos incumbentes para que haja acesso dos novos entrantes. É a luta para a efetividade dos direitos da concorrência, da ordem econômica constitucional que pretende ser capitalista. Não há como ser diferente no Brasil.
Certamente que os aplausos dessa política, editada de forma equilibrada (com justa medida), com estudos técnicos e ouvindo todos os interessados, inclusive os transportadores marítimos estrangeiros, viriam mais dos usuários brasileiros, das EB N´s e dos terminais portuários, que pagam os tributos federais que remuneram os servidores da Antaq, do que dos operadores estrangeiros que aqui operam.
O Estado precisa estar do lado de quem precisa de regulação, equilibrando todos os interesses, e não de quem ele mais ouve. Em suma: o Estado não pode escolher um lado, como me parece, inacreditavelmente, tinha sido a sua opção, até a criação da Agenda Positiva.
Afinal, fica a pergunta feita na Audiência presencial no Rio de Janeiro: Sem outorga e sem poder dissuasório, o Regulamento Marítimo é para valer?