Desde o início do ano, o setor portuário viveu com apreensão a chegada e os reflexos da COVID-19 ao Brasil. Buscando acalmar a ansiedade generalizada e também para prevenir qualquer tipo de interrupção nesta área, os setores patronal e laboral buscaram soluções locais e nacionais, fazendo com que todo o sistema fosse, gradualmente, ajustado, na medida em que os efeitos da pandemia fossem crescendo em nosso país.
Contrariando a expectativa geral, o Governo Federal editou a Medida Provisória 945, de 4 de abril de 2020, buscando regulamentar a relação entre os tomadores de serviços e os trabalhadores portuários avulsos durante a pandemia. Dentre outras disposições, citada medida provisória impôs regras para afastamento de trabalhados portuários avulsos, bem como estabeleceu a forma e critérios pelos quais estes trabalhadores afastados devem ser indenizados.
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Decorridos dois meses de sua edição, mesmo após sua regulamentação pela Portaria nº 46 do MINFRA, a MP 945 ainda traz grandes incertezas e prejuízos ao setor, os quais precisam ser corrigidos, quando da votação da Medida Provisória. Observa-se que, não obstante alguns acertos, os autores da medida não dimensionaram seus reais impactos.
De positivo, significativos avanços ao setor, que, seguramente, podem e devem ser incorporados ao setor após o período de excepcionalidade que vivemos. Pode-se, entre outros, destacar a escala eletrônica de trabalho, por meio seguro, que possibilita, além da escalação à distância, o combate a eventual fraude no sistema. Outro ponto de destaque, que felizmente já era praticado em várias localidades do país, é o da multifuncionalidade, que permite ao trabalhador portuário o desempenho de outra função, diversa da sua original, independente de novo registro ou cadastro, desde que habilitado.
Posto isto, a primeira grande crítica que se faz à MP reside no fato de ter traçado critérios de afastamento de trabalhadores sem a observância do impacto que isto que poderia trazer ao setor com a falta de mão-de-obra. O artigo 2º, IV, da MP traçou uma linha objetiva, com o afastamento de TPAs de idade igual ou superior a 60 anos. Já, o inciso V, do mesmo artigo, traz uma linha subjetiva de cortes, determinando o afastamento dos trabalhadores diagnosticados com imunodeficiência, doença respiratória, doença preexistente crônica ou grave, como a cardiovascular, respiratória ou metabólica.
Art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, o Órgão Gestor de Mão de Obra não poderá escalar trabalhador portuário avulso nas seguintes hipóteses:
..............................................
IV - quando o trabalhador tiver idade igual ou superior a sessenta anos; ou
V - quando o trabalhador tiver sido diagnosticado com:
a) imunodeficiência;
b) doença respiratória; ou
c) doença preexistente crônica ou grave, como doença cardiovascular, respiratória ou metabólica.
No que refere ao inciso IV, tem-se que a MP expurgou do sistema os trabalhadores com idade igual ou superior a 60 anos, sem considerar suas efetivas condições de saúde, sendo certo que, atualmente, incontáveis são os homens e mulheres, de idade superior a 60 anos, com saúde e condições físicas invejáveis, podendo ser considerados de baixíssimo risco, menor, até mesmo que o de pessoas abaixo dessa idade, com hábitos comuns.
O mesmo se pode falar das hipóteses de afastamento do inciso V., que, compulsoriamente, afastou um grande número de trabalhadores com doenças preexistentes crônicas ou graves, abrindo um leque extremamente subjetivo, impedindo que muitos trabalhadores, em plena condição laboral, pudessem exercer suas atividades.
Neste aspecto, a medida foi duplamente danosa. Para os trabalhadores, pois impediu que muitos trabalhadores em real condições de trabalho pudessem ser engajados, fazendo diminuir sensivelmente suas possibilidades de ganho; para os operadores portuários/requisitantes, porque retirou do sistema, da noite para o dia, literalmente, um grande número de trabalhadores, havendo localidades em que esse número equivale a 30% do total de TPAs.
Não bastasse isso, a MP impôs aos requisitantes de mão de obra avulsa (operadores portuários, TUPs e terminais arrendados) a obrigação de pagamento das indenizações aos TPAs afastados, desconsiderando os termos da Lei 12.815/2013, que alterou o disposto no artigo 73 da Lei 9.719/98, que já estabelecia uma renda mínima aos trabalhadores sem condições de escalação. Neste sentido, dispõe o artigo 3º, da MP 945:
Art. 3º Enquanto persistir o impedimento de escalação com fundamento em qualquer das hipóteses previstas no art. 2º, o trabalhador portuário avulso terá direito ao recebimento de indenização compensatória mensal no valor correspondente a cinquenta por cento sobre a média mensal recebida por ele por intermédio do Órgão Gestor de Mão de Obra entre 1º de outubro de 2019 e 31 de março de 2020.
§ 1º O pagamento da indenização será custeado pelo operador portuário ou por qualquer tomador de serviço que requisitar trabalhador portuário avulso ao Órgão Gestor de Mão de Obra.
A redação da Medida Provisória gerou muitas dúvidas quanto aos critérios a utilizados para a composição da base de cálculo dos valores das indenizações TPAs, não sendo uniforme sua interpretação entre os operadores, requisitantes e próprios trabalhadores de todo o país. As principais dúvidas eram se as parcelas de IRRF e INSS parte do trabalhador deveriam ou não compor a base de cálculo, ou ainda, se as demais verbas de natureza trabalhista (DSRs, férias e 13º) também deveriam ser incluídas.
A já mencionada Portaria 46 trouxe um certo alento ao setor, ao permitir que as Autoridades Portuárias efetuem diretamente o ressarcimento dos valores desembolsados pelos requisitantes.
Mesmo assim, continuam a persistir algumas dúvidas, pois, em muitos locais, as Autoridades Portuárias têm o entendimento que a Portaria não poderia ampliar ou modificar a abrangência da MP e, portanto, na base de cálculo do valor a ser indenizado aos trabalhadores não entram os valores de IRRF e INSS parte do empregado, somente sendo considerados os valores líquidos recebidos.
Não é o que se entende. Se dúvida havia quanto a interpretação da MP, a Portaria 46 veio a aclará-la e determinar o cálculo pelo valor “bruto” recebido pelo trabalhador. Acredita-se, com a devida vênia, que qualquer leitura diversa não se sustenta, pois não se compatibiliza com o todo da norma, em especial, quando de sua interpretação e análise sistêmica.
Ainda no que respeita aos critérios de cálculo de remuneração, importa salientar que a MP 945 não tratou dos casos excepcionais, onde o trabalhador estava afastado, por qualquer motivo, não recebendo nenhum valor do OGMO entre os meses de outubro de 2019 e março de 2020, e, apto ao retorno, deve ser afastado por força da própria MP. A título de exemplo, a TPA afastada por licença maternidade, que não aferiu qualquer valor pago pelo OGMO nos últimos 6 (seis) meses e que está impedida de voltar por ser lactante. Qual o valor a ser pago? Da mesma forma, o TPA com doença cardíaca crônica, afastado anteriormente por acidente de trabalho e agora impedido de voltar. Outros tantos exemplos poderiam ser dados.
Como equacionar estas questões?
Em mais um aspecto negativo, a Medida Provisória desconsidera por completo a existência dos Terminais de Uso Privado, chamados TUPs, estabelecendo apenas a possibilidade de restituição dos valores pagos aos TPAs a título de indenização para os operadores portuários e arrendatários, deixando de considerar a devolução dos valores para os TUPs, que, em alguns casos, representam mais de 70% (setenta por cento) do volume de mão de obra requisitado. Infelizmente, os TUPs não podem se beneficiar dos Convênios que trata a Portaria 46, justamente por não terem sido contemplados com o direito à restituição pela MP. Neste particular, há de ser consignada a total ausência de lógica ou motivação para a não restituição de qualquer valor a esses terminais, podendo esta medida ser caracterizada como verdadeira e ilegítima expropriação de patrimônio privado pelo Estado.
Por fim, importante mencionar que a própria Administração Pública deveria custear as indenizações aos TPAs com os valores recolhidos pelos próprios requisitantes de mão de obra, destinados à formação do Fundo Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo – FDEPM, valores estes, administrados pela Marinha do Brasil e cuja soma beira a casa de 1,5 bilhão de reais, sem criar o impacto no fluxo de caixa de operadores portuários, terminais arrendados e terminais de uso privado.
Postas as principais questões acerca da MP 945, seus acertos e equívocos, resta a expectativa acerca do texto final que será aprovado em sua votação, que se espera contemple os seguintes pontos:
a) Exclusão do inciso IV, do artigo 3º, que impõe o afastamento de todo TPA com idade igual ou superior a 60 anos de idade, bem como alteração da redação do inciso V, possibilitando que o afastamento seja apenas dos TPAs que comprovadamente pertençam aos chamados grupos de risco,
b) Definição clara e objetiva de todas as verbas que devem ser incluídas na composição da base de cálculo do valor a ser indenizado aos trabalhadores portuários avulsos, a fim de se evitar possíveis e eventuais questionamentos futuros, inclusive para os trabalhadores que estavam afastados do trabalho por motivo de acidentes, doença ou gravides, e que deveriam retornar agora ao trabalho, mas não podem fazê-lo em virtude da própria MP.
c) Possibilidade de custeio direto das indenizações com valores já existentes na conta para o FDEPM (Fundo para o Desenvolvimento do Ensino Profissional Marítimo), formado pelas contribuições dos requisitantes de mão-de-obra portuária e, atualmente, sem utilização;
d) Ressarcimento aos requisitantes e/ou às autoridades portuárias de todos os valores desembolsados a título de indenização para os TPAs, com base na MP 945, até a data da efetiva votação da medida, inclusive dos valores pagos pelos TUPs;
e) Suspensão, pelo prazo de 6 meses, no mínimo, do adicional de 2,5% sobre o valor da mão de obra requisitada, para custeio do próprio FDEPM.
Assim, imperioso que o Congresso Nacional, ao apreciar a Medida Provisória, leve em consideração as questões acima mencionadas, a fim de equalizar a questão e pacificar os conflitos criados pelo próprio Governo, ao interferir desnecessariamente importante setor econômico nacional.
Roberto Garofalo é presidente do Sindicato dos Operadores Portuários do Espírito Santo (Sindiopes)