Publicado no Diário Oficial da União de 3 de junho de 2025, o Decreto 12.481, de 2 de junho de 2025, institui a nova Política Marítima Nacional (PMN), trazendo para o cenário político, jurídico e administrativo do Brasil um mar de esperanças de efetividade quanto à verdadeira integração dos temas marítimos à vida nacional. Todo esse mar de esperanças, contudo, surge em meio a um verdadeiro oceano de incertezas, de forma a que a concretização dessa política ainda demandará muito esforço do Estado e de suas instituições, assim como de toda a sociedade brasileira. As incertezas, contudo, são muitas e de dimensões oceânicas, pelo que importarão em uma multiplicidade de desafios no caminho da implementação da nova política.
Essa incertezas se manifestam tanto no cenário nacional quanto no cenário internacional. No cenário nacional, podemos elencar incertezas relativas às expectativas de crescimento econômico, à cada vez mais vertiginosa rotatividade de ideias em uma sociedade essencialmente plural, à sempre destrutiva profundidade das desigualdades sociais e à crítica deficiência de integração entre as políticas da União e dos entes políticos subnacionais. No cenário internacional, por sua vez, as incertezas tendem a ser ainda maiores e vão desde a já prolongada guerra na Ucrânia até a recente guerra tarifária movida pelos Estados Unidos, passando pelas questões ambientais da sustentabilidade no uso dos recursos naturais e da incômoda realidade constituída pelas mudanças climáticas.
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Para se contrapor a esse oceano de incertezas, a PMN prima por estabelecer uma nova forma de se pensar o mar brasileiro, mais coerente com a realidade e mais consistentes quanto aos caminhos que devem ser tomados na superação dos desafios que se apresentam. As virtudes de uma política que seja, ao mesmo tempo, ambiciosa e realista, devem servir como guia para renovar as relações enfraquecidas entre um Brasil que, nascido de costas para o mar, começa a se dar conta dos erros políticos e estratégicos do passado, passa a melhor perceber as mazelas do presente e tenta focar no futuro.
Uma primeira virtude da nova PMN já pode ser identificada na sua própria entrada em vigor. A nova política vem substituir a prescrição contida no agora revogado Decreto 1.265/1994, o qual, em grande parte, havia sido uma cópia mais estruturada do anterior Decreto 89.331/1984, que o havia precedido uma década antes como documento tentativo de uma política marítima que então carecia de urgente aprovação. Aqueles decretos foram, sem dúvida, fundamentais para que se tenha, agora, algo mais parecido com uma política marítima. Entretanto, embora carregados de boas intenções e tendo constituído marcos para o progresso até hoje verificado nas questões marítimas, sem dúvida, já não tinham o mesmo fôlego normativo. Defasados entre três e quatro décadas e destoantes da realidade, há algum tempo já não serviam como inspiração apropriada para superar os desafios contemporâneos ligados a esse esforço de integração do mar brasileiro ao Brasil que desse mar tanto depende.
A nova PMN também reconhece a necessidade de articulação entre os órgãos e entidades da administração pública federal e aqueles das esferas estadual, distrital e municipal, com vistas à implementação da referida política. Atribui, ainda, à União, o papel de orientar os entes federados subnacionais. Esse reconhecimento tem o condão de trazer para o centro das discussões sobre a política marítima, também, os entes mais próximos do cidadão, deixando claro que as responsabilidades acerca do mar brasileiro não se restringem a uma ou a outra esfera de poder.
Nesse ponto, é importante sublinhar que os anteriores Decretos 1.265/1994 e 89.331/1984, em seus fatores condicionantes, objetivos e ações a realizar, não faziam uma só remissão à participação estadual, distrital e municipal na PMN. Por mais inacreditável que pareça, os modelos anteriores demonstravam sua convicção de que o governo central, de forma isolada, seria capaz de levar adiante projetos e programas tão extensos quanto o litoral brasileiro: algo de todo incompatível com a grandiosidade física de um Brasil excepcionalmente diverso e de dimensões continentais
Se a substituição de marcos normativos obsoletos e a chamada à responsabilidade de todas as esferas nacionais da administração pública já representaria uma evolução sem precedentes na política marítima até há pouco vigente, mais ainda pode ser dito dos princípios que passaram a orientar a nova política marítima. Esses princípios, inexistentes nos modelos anteriores, procuram refletir os desafios da contemporaneidade e as expectativas para o futuro. Nesse sentido, são definidos como princípios da PMN:
I - a defesa da soberania do Estado brasileiro, especialmente sobre os recursos existentes na zona econômica exclusiva e na plataforma continental brasileiras;
II - a garantia da segurança no mar e nas águas interiores;
III - o desenvolvimento sustentável, com vistas ao bem-estar humano e à conservação dos serviços ecossistêmicos;
IV - o respeito aos compromissos internacionais assumidos pelo país;
V - o incentivo à cooperação internacional para o uso pacífico do mar, especialmente no Atlântico Sul;
VI - a cooperação entre entidades públicas e privadas para o desenvolvimento da economia azul;
VII - o estímulo ao fortalecimento do registro de embarcações e trabalhadores no país para atuação no transporte aquaviário;
VIII - o estímulo ao emprego e à qualificação da mão de obra brasileira, com respeito à igualdade de gênero, e ao enfrentamento a todas as formas de discriminação e de violência; e
IX - a garantia de uso dos recursos naturais aquáticos de forma equilibrada pelos pescadores.
Os princípios elencados pela nova PMN traduzem a busca do equilíbrio entre questões tradicionais e novas questões que a contemporaneidade impõe ao pensamento e à prática dos Estados que pretendem buscar no mar fontes para seu progresso. As ambições tradicionais incluem a defesa da soberania, a garantia da segurança e o respeito aos compromissos internacionais. Já as novas questões se fazem ver nos princípios referentes ao desenvolvimento sustentável, à cooperação internacional, à cooperação público-privada, ao registro de embarcações e trabalhadores no país, ao emprego e qualificação de mão-de-obra brasileira e à garantia de uso equilibrado dos recursos naturais. Como a realidade não é opcional para a política e costuma chegar sem pedir licença, são os modelos políticos que devem se adaptar à realidade imposta, não o contrário. Os princípios da nova PMN procuram traduzir essa adaptação à realidade e sinalizar caminhos para o futuro.
Essa sinalização de caminhos para o futuro faz ver o caráter inovador da nova PMN no amplo contexto de temas por ela abraçados e na tentativa de melhor estabelecer conceitos ainda desconhecidos de boa parte do povo brasileiro. Nesse sentido, pode-se dizer que a nova política representa um significativo avanço em relação aos modelos anteriores, entre outras razões, pelos seguintes aspectos:
a) abrangência na implementação: caracterizada pelo chamado à responsabilidade de toda a sociedade brasileira, em suas vertentes pública e privada, em todos os níveis federados, sem descuidar da comunidade acadêmica, até então ignorada;
b) pilares de implementação: caracterizados pela enunciação clara de princípios que devem nortear a implementação da política proposta, os quais, embora ambiciosos, são críveis e possíveis de realização mediante esforço concentrado e coordenado dos diferentes segmentos da sociedade;
c) atualização conceitual: manifestada na apresentação clara de conceitos coerentes com a realidade contemporânea do Brasil e com a importância do mar para a realização dos objetivos nacionais brasileiros, bem como para a projeção internacional do Brasil; e
d) abrangência temática: manifestada na incorporação à política marítima de temas que, se até há uma ou duas décadas poderiam ser percebidos como “modismos modernos”, hoje se mostram essenciais para angariar credibilidade e respeitabilidade nos cenários nacional e internacional.
No que se refere à abrangência na implementação, além do já citado chamamento de diferentes segmentos da sociedade, a nova PMN faz referência à necessidade de articulação com outras políticas, com vistas à sua implementação. Pode-se dizer, a esse respeito, que a nova política marítima começa a adotar as feições de uma política pública, em seu mais verdadeiro sentido. Sendo política pública, a PMN terá a oportunidade, até então praticamente negada, de se afirmar como uma preocupação permanente, uma política de Estado, não apenas uma peça administrativa deixada à mercê das eventuais mudanças de governo.
Os pilares de implementação, já caracterizados pelos princípios claramente enunciados, são reforçados pela importância dada a temas críticos na enunciação das atividades relacionadas ao uso do mar, das ilhas (costeiras e oceânicas) e das águas interiores. No que se refere ao uso do mar, a nova PMN, além de incluir as ilhas, tratou de incluir o leito e o subsolo marinhos até o limite exterior da plataforma continental brasileira, além de prever a possibilidade de inclusão de outras áreas, de acordo com o interesse nacional. Enunciar as águas interiores na política marítima, por sua vez, deixa clara a intenção de se integrar o modal aquaviário à logística aquaviária como um todo. São temas críticos para que se promova uma nova inserção do Brasil na economia global, fortalecendo-o com mais recursos naturais e reduzindo o chamado “Custo Brasil”, que ainda prejudica sensivelmente as exportações brasileiras.
A atualização conceitual é de extrema relevância ao apresentar à sociedade brasileira conceitos antes restritos a círculos burocráticos ou acadêmicos, desprovidos de significação para o cidadão comum. É o caso, por exemplo, da apresentação dos conceitos de Amazônia Azul, consciência situacional marítima e economia azul, os quais passam a fazer sentido no contexto da futura implementação da PMN. É o caso, também, do estabelecimento da necessária relação entre os conceitos de poder naval e proteção marítima, ao mesmo tempo diferentes e complementares, ambos essenciais para o perfeito entendimento das intenções do Brasil com relação ao uso pacífico, mas devidamente protegido, de seu mar.
Por fim, a abrangência temática pode ser deduzida da enunciação dos objetivos da nova PMN. Sendo dez ao todo, assim como os princípios, os objetivos estabelecidos para o novo modelo de política marítima do Brasil traduzem o esforço de compromisso entre objetivos tradicionais e outros novos, estes decorrentes da inevitável marcha do tempo e das mudanças sociais. Objetivos tradicionais como o de assegurar o exercício da soberania brasileira; integram-se a outros novos como os de incrementar a segurança marítima, estimular a participação da mulher, e incentivar a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Nesse sentido, são definidos como objetivos da PMN:
I - assegurar o exercício da soberania brasileira e coibir atos ilícitos e ameaças;
II - fortalecer a posição do País como ator marítimo influente no cenário internacional, em particular no Atlântico Sul;
III - incrementar a segurança marítima;
IV - difundir e incentivar o conhecimento sobre a importância do mar, da zona costeira, dos ambientes fluviolacustres e da economia azul para o desenvolvimento nacional, com vistas a fortalecer a mentalidade marítima;
V - estimular a competitividade da frota mercante com bandeira brasileira e a participação de mão de obra brasileira, inclusive da mulher, nas atividades desenvolvidas nos ambientes marinho, costeiro ou fluviolacustre;
VI - promover o parque industrial marítimo dos setores da construção, da manutenção, do reparo, da jumborização, da conversão, da modernização e do desmonte de embarcações e estruturas;
VII - estimular a pesquisa científica e tecnológica e a inovação, marinha e marítima;
VIII - incentivar a conservação e o uso sustentável da biodiversidade e dos ecossistemas marinhos, costeiros e fluviolacustres;
IX - promover a integração das ações para o aproveitamento econômico de recursos, vivos e não vivos, marinhos, costeiros e fluviolacustres, de forma compatível com os princípios do desenvolvimento sustentável; e
X - promover atividades turísticas, sociais, esportivas, recreativas e culturais que valorizem o uso do mar e das águas interiores, de forma sustentável e associadas ao empreendedorismo e à empregabilidade.
A PMN cuida, também, de conformar a cada um dos objetivos enunciados, orientações estratégicas voltadas para a sua consecução. Dessa forma, a nova política desce a um nível de detalhamento que, embora longe de ser exaustivo, sinaliza o caminho a ser percorrido de uma forma compreensível, assim aumentando o seu conteúdo analítico e ganhando em credibilidade com relação às políticas anteriores. A credibilidade, em especial, é particularmente relevante para a incorporação da política marítima ao contexto das políticas públicas do Brasil, com vistas à sua efetiva implementação.
A nova PMN chega ao cenário marítimo brasileiro poucos dias antes da III Conferência das Nações Unidas sob Oceanos (UNOC3), que terá início em 9 de junho, na cidade de Nice, França. Tendo como tema central a aceleração e a mobilização de todos os atores para a conservação e o uso sustentável dos oceanos, a Conferência, certamente, importará em novos desafios para o setor marítimo brasileiro. Entrarão na pauta das futuras discussões sobre o transporte marítimo, por exemplo a urgente descarbonização do modal e o não menos relevante tema dos danos ambientais provocados pelos derrames de óleo e pelo uso indiscriminado e descontrolado de água de lastro. A PMN recém-chegada busca sinalizar para o mundo, no contexto de tantas incertezas e desafios a elas associados, o compromisso do Brasil com os interesses de ordem global. Credibilidade, nesse sentido, é a palavra de ordem.
Dessa forma, a nova Política Marítima Nacional (PMN), se não chega a ser disruptiva em seu objetivo essencial de bem definir as relações entre o Brasil e seu mar, com certeza o é na incorporação de temas novos em paralelo com temas tradicionais. Os desafios de implementação desse mar de esperanças são imensos quando confrontados com o oceano de incertezas que os emolduram. Em seu conjunto, a nova PMN traduz uma significativa evolução na forma de pensar o mar brasileiro. Cabe agora aos órgãos e entidades da administração pública de todos os níveis federados, inclusive os órgãos de fiscalização e controle, com o suporte da iniciativa privada, da academia e de toda a sociedade, converter em ações efetivas as intenções manifestas. Se é verdade que o futuro do Brasil está no mar, também é verdade que a construção desse futuro começa agora, no presente.
Referências
BRASIL. Decreto 89.331, de 25 de janeiro de 1984. Aprova a Política Marítima Nacional (PMN). Brasília, 1984. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1980-1989/D89331.htm. Acesso em 2 jun. 2025.
BRASIL. Decreto 1.265, de 11 de outubro de 1994. Aprova a Política Marítima Nacional (PMN). Brasília, 1994. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D1265.htm. Acesso em 2 jun. 2025.
BRASIL. Decreto 12.481, de 2 de junho de 2025. Institui a Política Marítima Nacional. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/Decreto/D12481.htm. Brasília, 2025. Acesso em 3 jun. 2025.
UN. United Nations. United Nations ocean conference. Nice França, 2025. Disponível em: https://www.diplomatie.gouv.fr/en/french-foreign-policy/climate-and-environment/protecting-the-environment-and-combating-pollution/third-un-ocean-conference-unoc3-nice-9-13-june-2025-65853/. Acesso em 8 jun. 2025.
Carlos Wellington Leite de Almeida é auditor federal do Tribunal de Contas da União (TCU), designado para a Auditoria Especializada em Infraestrutura Portuária. Pós-doutorando e doutor em Estudos Marítimos pelo Programa de Pós-Graduação da Escola de Guerra Naval (PPGEM/EGN); doutor em Administração pela Universidad de la Empresa (UDE-Uruguai); mestre em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB); especialista em Política e Estratégia pela Escola Superior de Guerra (ESG) e em Hidrografia pela Diretoria de Hidrografia e Navegação (DHN); bacharel em Direito pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e em Ciências Navais pela Escola Naval. E-mail: carlosla@tcu.gov.br / carloscwla@gmail.com