O preço do barril de petróleo do tipo WTI, referência para o mercado dos Estados Unidos, entrou ontem, pela primeira vez em sua história, no terreno negativo. Os preços voltaram nesta terça-feira (21) para o patamar acima de zero, mas ainda pairam muitas dúvidas sobre os efeitos do recente colapso do mercado americano para a Petrobras. Segundo especialistas consultados pelo Valor, a petroleira brasileira dificilmente viverá a realidade de negociar as suas cargas de petróleo a preços negativos, mas, num setor extremamente globalizado, a expectativa é que empresa seja afetada indiretamente pela situação inédita dos Estados Unidos.
Nenhuma petroleira passará incólume à atual crise da indústria de óleo e gás. A contração sem precedentes da demanda, frente à crise econômica desencadeada pela pandemia do novo coronavírus, e o excesso de oferta de petróleo pressionam os preços para baixo, reduzindo a capacidade de geração de caixa da estatal brasileira, comprometendo a sua trajetória de desalavancagem e investimentos em novos projetos.
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A Petrobras, no entanto, vive uma realidade diferente da dos produtores dos EUA e a sua produção é negociada com um outro preço de referência: o Brent, que também é negociado em viés de baixa, mas que não deve entrar no terreno negativo.
Para entender melhor o que a queda histórica do WTI significa para a estatal brasileira, é preciso contextualizar melhor as nuances do que ocorreu ontem nos Estados Unidos e, antes de mais nada, não se perder na sopa de letrinhas do mercado petrolífero. O West Texas Intermediate (WTI) é um tipo de petróleo usado como referência comercial, originário da bacia permiana do oeste do Texas. É a especificação da commodity usada como referência na negociação do petróleo dos EUA, que é produzido, em sua maior parte, em terra. Já o Brent a uma mistura de petróleos produzidos no mar do Norte e que funciona como uma espécie de referência global.
O que ocorreu na segunda-feira com o WTI, portanto, reflete uma peculiaridade muito própria do mercado norte-americano. O professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP) Helder Queiroz explica que a queda drástica do preço do WTI na segunda-feira foi uma combinação entre um fator estrutural do mercado de petróleo americano com um efeito de especulação financeira.
O petróleo é negociado em mercados futuros. O que aconteceu é que o contrato do WTI para entrega em maio expira nesta terça-feira (21), o que levou a uma corrida, por parte dos operadores, para liquidarem suas posições, ontem, frente às perspectivas ruins em torno da demanda e dos sinais de que os estoques estadunidenses estão muito elevados. Quem assinou o contrato para maio enfrentou, portanto, mais dificuldade para renegociar seus papéis e teve de pagar para se livrar dos contratos futuros. Embora também desvalorizado, o WTI para junho, por exemplo, continuou no terreno positivo.
“É uma situação absolutamente anormal. Não é uma situação que vai tender a perdurar”, afirma Queiroz, que não vê um efeito direto da queda do WTI para o mercado brasileiro. “Há um descolamento completo entre o Brent e o WTI. Espera-se que o Brent reflita melhor os fundamentos do mercado global de petróleo”, disse.
O chefe de pesquisa da área de exploração e produção de petróleo da Wood Mackenzie na América Latina, Marcelo de Assis, comenta, por sua vez, que a queda histórica do WTI reflete muito as particularidades da produção terrestre dos EUA. Ele explica que a negociação do WTI se restringe aos Estados Unidos e que os detentores de contratos desse tipo têm uma flexibilidade menor para encontrar compradores. Num momento em que os dutos estão saturados e a capacidade de armazenamento nos EUA está cheia, o produtor local, em terra, não tem a opção de pegar um navio e vender em outro país.
“O Brent é uma situação diferente. É negociado para outros clientes, o produtor tem uma flexibilidade maior onde entregar a sua carga. Mesmo com a crise, alguns países ainda conseguem comprar óleo. Seria muito o extremo o Brent cair para abaixo de zero, não acredito nisso”, afirma.
Na mesma linha, o advogado Giovani Loss, da área de Infraestrutura e Energia do escritório Mattos Filho, também vê pouco impacto da queda do WTI para o mercado brasileiro. “As pessoas não podem confundir a referência de preços”, disse ele, que também vê no valor negativo do WTI um reflexo da dinâmica própria do mercado norte-americano.
Segundo o advogado, para o produtor terrestre americano, faz mais sentido vender o petróleo a um preço negativo e manter o contrato de aluguel da terra do que cancelar a produção, perder o contrato e não ter como recuperar o valor no futuro. “No Brasil [onde o petróleo é da União], a empresa pede uma autorização para a ANP para parar a produção”, explicou.
A parte positiva dessa história toda é que o Brasil, que importa derivados dos Estados Unidos, pode se beneficiar da queda histórica dos preços do WTI, disse o ex-diretor-geral da ANP, Décio Oddone. Ele acredita que a baixa demanda e os estoques elevados devem pressionar os preços do petróleo por um tempo, ainda.
Ainda que negocie seus contratos com outra referência, a Petrobras, contudo, não passará batida aos efeitos do choque de preços do WTI. A crise nos EUA reflete, em parte, o excesso dos estoques no mercado, uma realidade que tende a contaminar também o preço do Brent. Loss destaca que a queda brusca do preço do barril pode ter um efeito indireto sobre o preço de exportação de petróleo. Como os Estados Unidos são um dos maiores exportadores de petróleo, a queda do WTI pode forçar uma redução no Brent no mercado global, em um segundo momento. Não à toa, a cotação do Brent caiu 8,93% na segunda-feira e nesta terça-feira opera abaixo de US$ 20.
O Valor apurou que a Petrobras, por ora, pretende aguardar o comportamento do mercado petrolífero, sobretudo do petróleo tipo WTI nos Estados Unidos, antes de tomar qualquer nova decisão estratégica. “É cedo para dizer. Temos que aguardar alguns dias pelo menos”, disse uma fonte próxima à administração da empresa.
Em meio ao choque dos preços, o presidente da estatal, Roberto Castello Branco, tem dito que a Petrobras está se preparando para sobreviver ao preço do barril a US$ 25. A empresa é, atualmente, mais competitiva que os produtores americanos do shale – óleo e gás não convencionais, produzidos em terra – e tende a ser menos impactada pelo cenário de preços em baixa do que os concorrentes dos EUA.
A conta da crise, no entanto, já chegou para a Petrobras. Desde o fim de março, a empresa teve de cortar a sua produção, por falta de demanda no mercado. A empresa anunciou, para abril, uma redução de 200 mil barris diários e, em seguida, limitou o seu patamar de produção a 2,07 milhões de barris/dia. Foram hibernados os ativos em águas rasas, com custos mais elevados, e plataformas maiores, como a P-43 e P-48, que operam em Barracuda e Caratinga, na Bacia de Campos, foram paradas temporariamente. O diretor de exploração e produção da companhia, Carlos Alberto Pereira de Oliveira, disse que nem mesmo os campos do pré-sal, mais competitivos, estão livres de cortes, se for conveniente.
Apesar da demanda global mais baixa, Castello Branco tem dito que a empresa tem mantido as suas exportações de óleo cru e de combustíveis (sobretudo o bunker, óleo combustível marítimo). A realidade do mercado, em geral, porém, não inspira comemorações.
A empresa cortou seus investimentos para o ano em cerca de 30%, para US$ 8,5 bilhões, e tem feito esforços para reduzir custos. No operacional, chamou as principais fornecedoras para renegociar contratos. Adiou o pagamento de dividendos e bônus por performance e vem tentando implementar, em meio a reveses na Justiça, um corte de salários, acompanhado da redução da jornada de trabalho, de seus funcionários.
Do ponto de vista financeiro, a companhia teve de recorrer ao desembolso de uma linha compromissada da ordem de US$ 8 bilhões e aumentou o seu endividamento. A empresa já dá praticamente como perdida a meta de reduzir a sua alavancagem, medida pela relação dívida líquida/Ebitda, para 1,5 vez em 2020.
O preço do Brent nos patamares atuais, se persistir, tende a comprometer também os projetos futuros. Castello Branco disse recentemente que os novos projetos da petroleira estão sendo preparados para serem viáveis a um preço do petróleo de US$ 35.
Fonte: Valor