Quando o Cais do Valongo foi soterrado para a construção do Cais da Imperatriz - que receberia Dona Teresa Cristina, em 1843 -, Dom Pedro II não poderia imaginar que a história escondida do porto que mais recebeu escravos africanos no mundo voltaria à tona dois séculos depois, graças a mais um processo de revitalização urbanística. Dessa vez, no entanto, o alvo é a Olimpíada do Rio, que acontece em 2016, e pela primeira vez desde a construção do Cais da Imperatriz, o Valongo volta a ocupar lugar de destaque na nova paisagem da cidade.
"A realeza se fez suficientemente lembrar, mas não os negros escravizados. Esses foram deliberadamente apagados com a superposição do Cais da Imperatriz", afirma a arqueóloga Tania Andrade Lima, professora do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ e responsável pelo monitoramento arqueológico do projeto Porto Maravilha.
As localizações tanto do Cais da Imperatriz quanto do Cais do Valongo já eram conhecidas de historiadores e arqueólogos graças a uma antiga coluna com uma pequena placa registrando a presença do antigo porto. Sua estrutura foi revelada durante uma obra de drenagem na zona portuária, durante escavações na rua Barão de Tefé, e devido a forma como o Cais da Imperatriz foi construído - por cima do Cais do Valongo -, o sítio arqueológico encontra-se em ótimo estado de conservação.
Desde que foi revelado, o Cais do Valongo teve sua importância histórica confirmada tanto por meio das descobertas feitas no sítio arqueológico quanto no reconhecimento político da região - uma antiga reivindicação de representações e lideranças do movimento negro no Rio. O prefeito Eduardo Paes já anunciou que a área do Cais do Valongo será transformada num memorial - um museu a céu aberto - que pode se chamar Memorial da Diáspora Africana.
A prefeitura também admite a criação do Circuito da Herança Africana na área do Porto Maravilha. Sob a coordenação da Subsecretaria do Patrimônio Histórico, um conjunto de locais marcantes para a memória da cultura afro-brasileira - que inclui o Cais do Valongo, os Jardins do Valongo, a Pedra do Sal, o Largo do Depósito e o Instituto Pretos Novos, além do Centro Cultural José Bonifácio - estão sendo restaurados e revitalizados com recursos do Porto Maravilha Cultural. Os locais que integram o circuito devem receber sinalização apropriada para que sejam convertidos em pontos de visitação turística e de interesse cultural para escolas. A prefeitura ainda promete a produção de materiais informativos sobre a relevância histórica de cada um, e do circuito em geral.
A decisão pela preservação da área do Valongo dentro do projeto Porto Maravilha foi "sábia", segundo a professora Tania Lima, que defende a contrapartida da história do negro no Brasil dentro do projeto de renovação e "clareamento" do porto. "São extremos", afirma, "mas que devem conviver e funcionar como antídoto contra a amnésia social. Houve uma situação deliberada de apagar a história do complexo do Valongo, uma chaga vergonhosa na vida da cidade", diz a doutora em arqueologia.
Uma das principais descobertas feitas no Cais do Valongo até agora foi a retirada de três canhões de ferro, provavelmente do começo do século XVII. Os canhões foram uma pequena surpresa para a equipe de arqueólogos porque indicam a presença de uma Boca de Fogo inusitada e que não era conhecida no mapa militar do Rio imperial. Ainda espera-se a confirmação de que os canhões estejam entre os mais antigos da cidade, e talvez do país.
Além dos canhões, já foram encontrados diversos artefatos culturais que remetem ao cotidiano dos cerca de 2 milhões de escravos que passaram pelo Valongo durante o seu período de maior atividade, entre 1811 e 1831, como búzios, botões, cachimbos e outros pequenos itens feitos a partir de ossos de animais. Segundo a professora Tania, as escavações no Valongo devem prosseguir até o segundo semestre deste ano. A pesquisa e apresentação das descobertas, no entanto, ainda devem levar mais alguns anos devido à grande quantidade de material encontrado.
Moldado sob inspiração do projeto que deu origem ao Puerto Madero, hoje um dos bairros mais caros de Buenos Aires, o Porto Maravilha prevê um salto dos atuais 30 mil para 100 mil habitantes na região nos próximos dez anos. Os futuros moradores ainda vão contar com mais duas importantes obras: o Museu do Amanhã, do renomado arquiteto espanhol Santiago Calatrava, e o Museu de Arte do Rio (MAR), já em construção na Praça Mauá.
O custo total do Porto Maravilha está estimado em cerca de R$ 8 bilhões, com a maior parte dos recursos proveniente de parcerias privadas por meio de Operação Urbana Consorciada - um instrumento de política urbana criado pelo Estatuto das Cidades e regido pela Lei Municipal Complementar 101/2009. A prefeitura afirma que os investidores do mercado imobiliário é que pagarão a conta da requalificação urbana: a lei autoriza a mudança de uso e o aumento de potencial de construção mediante pagamento de contrapartida financeira por meio da compra de Certificados de Potencial Adicional de Construção (Cepacs). O valor arrecadado será obrigatoriamente investido na requalificação urbana da região.
Ainda assim, foi do orçamento municipal que saíram R$ 350 milhões como investimento inicial para a requalificação da área de 350 mil m2 entre as avenidas Rodrigues Alves e Venezuela, as ruas Sacadura Cabral e Camerino, a Praça Mauá, o Pier Mauá e o Morro da Conceição. A segunda fase do projeto deve estender os benefícios aos bairros do Centro, Santo Cristo, Gamboa, Saúde, Caju, Cidade Nova e São Cristovão. O trânsito no centro da cidade também sofrerá mudanças, principalmente com a demolição do Elevado da Perimetral.
Fonte: Valor Econômico/Por Fred Leal | Para o Valor, do Rio
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