Enquanto a produção das hidrelétricas mingua com a seca, as usinas eólicas e solares têm batido recordes de geração e ajudado a sustentar o atendimento da demanda de energia. No entanto, gargalos no sistema de transmissão têm feito com que, em alguns momentos do dia e da semana, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) determine cortes de geração eólica e solar, principalmente por falta de capacidade para escoamento de toda a energia nas linhas.
Esse tipo de ocorrência não é novidade para o setor elétrico e está relacionado à rotina de operação do sistema. Mas agentes do setor de renováveis relataram ao Valor que ordens de redução temporária de geração têm se acentuado nos últimos meses, em meio à crise hídrica - no caso da solar, estima-se que a quantidade de energia “perdida” tenha crescido três vezes. Para alguns agentes, isso evidencia o descasamento entre o ritmo de crescimento da geração, sobretudo no Nordeste, e da transmissão, que tem ficado para trás.
PUBLICIDADE
Reduções involuntárias na produção de energia das usinas (“curtailment por constrained-off”, na expressão técnica) podem acontecer com qualquer tipo de fonte, e por motivos variados. As usinas podem, por exemplo, sofrer restrições pontuais pela capacidade de escoamento das linhas de transmissão, por manutenções e contingências específicas na rede.
Na visão dos geradores, o aumento recente das ocorrências tem a ver com a crise hídrica, que não só tornou o “bolsão” de geração eólica e solar do Nordeste ainda mais relevante ao sistema, mas também intensificou os envios de energia da região para o Sudeste.
“Com a escassez hídrica, a otimização elétrica e energética se tornou mais complexa. O ONS tem que usar o máximo de recursos, então ele chama todas as usinas para operar. É como um guarda apitando o trânsito: ele solta os carros, mas precisa controlar o fluxo na rede”, explica Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica).
Segundo acompanhamento feito pela entidade, os cortes de geração têm acontecido com maior frequência e intensidade aos fins de semana, quando a demanda de carga é menor e verifica-se maior excedente de geração no Nordeste.
Já a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar) estimou, junto a seus associados, mais de 105 gigawatts-hora (GWh) de “energia perdida” por cortes entre janeiro e agosto. O volume é três vezes o verificado em todo o ano de 2019, e seria capaz de atender mais de 500 mil residências. “Acreditamos que isso tem correlação forte com a crise hídrica. Com o escoamento limitado, não estamos conseguindo aproveitar toda a sinergia e complementaridade das renováveis, que poderiam aliviar os reservatórios”, afirma Anderson Garofalo, vice-presidente de geração centralizada da Absolar.
O ONS reconhece o aumento dos cortes de produção, principalmente das eólicas, mas nega uma correlação com o cenário de escassez hídrica. Em nota, o operador afirmou que os gargalos de transmissão vêm sendo gradualmente superados e ressaltou a recém-inaugurada linha de Janaúba (MG), que ampliou o intercâmbio de energia entre Nordeste e Sudeste/Centro-Oeste. “Somente em 2021, até agosto, foram inaugurados mais de 4500 km de linhas de transmissão”, destaca, em nota.
O ONS também disse que, para diminuir as ocorrências e aumentar a troca de energia entre submercados, vêm adotando flexibilizações operacionais. Um exemplo é a mudança dos critérios de confiabilidade das linhas, de “N-2” para “N-1”.
Tiago Figueiro, sócio do Veirano Advogados, lembra que a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) recentemente definiu regras de compensação por “constrained-off” para eólicas, mas acabou deixando a solar de fora da regulamentação. “É algo bem relevante para os geradores. Dá muito mais segurança aos projetos, porque não é incomum que eventos na rede básica, alheios às instalações dos geradores, afetem a produção.”
As renováveis são hoje o “carro-chefe” da ampliação do parque gerador nacional. As eólicas já atingiram a marca de 19 GW de potência, representando 10,9% da matriz, vêm batendo recordes de geração. Em agosto, chegaram a gerar 11.680 MW médios de energia, o equivalente a 104,4% da demanda da região Nordeste naquele dia. A solar segue a mesma toada, com recordes sucessivos de produção, embora ainda tenha uma fatia menor na matriz, de 2,1%.
Entre os empreendedores, é comum a visão de que a expansão da transmissão não tem acompanhado a velocidade e dinamismo da geração renovável. “Existe uma falha estrutural. Precisamos da construção de um planejamento robusto”, avalia Garofalo.
Já Gannoum entende que não houve problema de planejamento. Para ela, foi a situação atípica da hidrologia que trouxe à tona novos paradigmas. “Com essa crise, aprendemos que não podemos mais contar com a geração hidrelétrica como no passado. Diante desse fato, precisamos sim fazer maior expansão da transmissão”.
Na Empresa de Pesquisa Energética (EPE), o desafio do planejamento de novas linhas de transmissão é crescente. Enquanto usinas eólicas e solares conseguem sair do papel em um ano e meio a três anos, projetos de transmissão podem levar de cinco a sete anos, da concepção até a entrada em operação comercial.
“Há quase 100 GW de projetos eólicos e solares na rua, obviamente o país não tem mercado para tudo isso. Temos uma incerteza associada a onde e em que ritmo esses projetos vão acontecer, e lembrando que muito disso está no mercado livre, sobre o qual temos menos visibilidade em relação ao mercado regulado. Então, quando vamos planejar a transmissão, passamos a ter um espectro muito grande de possibilidades para tomar decisão”, diz Barral.
Num cenário de ampla incerteza, a EPE tem buscado mapear áreas de “menor arrependimento” para organizar e sequenciar a expansão da transmissão. Tornam-se mais importantes, por exemplo, investimentos no sul da Bahia e na zona litorânea entre Alagoas e Rio Grande do Norte, além do norte de Minas Gerais. Erik Rego, diretor de estudos de energia elétrica da EPE, afirma que até março de 2022 devem ser lançados novos diagnósticos regionais e de planejamento da transmissão, que vão basear uma nova sequência de investimentos de médio e longo prazo.
Fonte: Valor