Índios kayapós, caminhoneiros e políticos locais do Pará partiram para a judicialização com um objetivo comum: barrar o projeto da Ferrogrão, ferrovia que conectaria a região norte do Mato Grosso ao porto de Miritituba (PA). Eles brigam na Justiça para que a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) faça audiências públicas em comunidades que seriam afetadas pelo projeto.
Os processos deverão atrasar o cronograma do governo federal para viabilizar a construção da linha férrea, que previa a publicação do edital até setembro deste ano. As reivindicações vão além do pedido por audiências públicas, já que alguns grupos são contrários à construção da ferrovia.
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Se sair do papel, o projeto será um corredor para escoamento da produção agrícola do Mato Grosso, mas competiria com ao menos mais três rotas: a BR-163, a malha ferroviária paulista e a Fico (Ferrovia de Integração do Centro-Oeste).
No caso da malha paulista, a concessionária Rumo prevê fazer investimentos nos trilhos da rota que liga hoje Rondonópolis (MT) a Santos como uma das contrapartidas da renovação antecipada de sua concessão. Já a construção da Fico entre Campinorte (GO) a Água Boa (MT) seria feita pela Vale.
A rodovia BR-163, já existente, é uma das principais rotas do agronegócio, a despeito de ter trechos não asfaltados que em momentos de chuva trazem riscos de atolamento aos caminhoneiros.
Para viabilizar a Ferrogrão, o governo federal resolveu conceder a rodovia em um modelo de pista simples e por um período de dez anos.
A iniciativa, porém, é mal recebida por comunidades locais no Pará. Caminhoneiros veem a ideia da Ferrogrão como uma ameaça a sua principal atividade econômica.
Já as comunidades indígenas do Xingu enxergam riscos ambientais e reclamam que não têm sido ouvidas pelo governo sobre o projeto.
O líder indígena kayapó Kokoró M?krãnõtire, diretor financeiro do Instituto Kabu, que reúne nove tribos do Pará, é um dos que resistem ao projeto.
“O governo nunca falou com os kayapós, só fez consultas na cidade grande, longe das aldeias. Tem que conversar com as lideranças de cada aldeia, não na cidade.”
O instituto é uma das entidades que move ações judiciais contra o avanço do projeto sem a aprovação dos índios. M?krãnõtire diz ainda não ter opinião formada sobre o tema, mas afirma temer que a linha férrea “aumente a pressão de madeireiros e fazendeiros sobre os índios.”
M?krãnõtire afirma que os pleitos dos indígenas são diferentes do dos caminhoneiros, mas advogados que atuam nos casos que questionam o projeto mantém comunicação frequente, segundo pessoas familiarizadas com a situação.
Wilson Rodrigues, caminhoneiro e presidente do Sindicam (Sindicato dos Caminhoneiros Autônomos) de Sorriso (MT), se diz contrário ao projeto.
“A Ferrogrão só vai beneficiar os grandes produtores e as multinacionais. Nós, caminhoneiros, ficaremos com o prejuízo. Tudo o que gira em torno da rodovia hoje vai acabar: mercados, farmácias, borracharias”, diz.
Segundo ele, a ANTT realizou audiências em cidades como Belém, mas não em comunidades por onde a ferrovia passará. “Eles não vieram para Sorriso, Itaituba ou Miritibuba (PA) ou outros lugares em que as pessoas estão sendo atingidas.”
O presidente da Câmara de Itautuba (PA), Manoel Rodrigues da Silva (PSDB) afirma que a maioria dos 15 vereadores da cidade é a favor da Ferrogrão, mas contra a falta de diálogo com a ANTT.
“Não sabemos por onde a ferrovia vai passar, o que vai ser afetado por ela e o que o nosso município vai ter de retorno com a construção”.
A Câmara ingressou na ação pela audiência pública junto à Associação Comunitária São Francisco de Assis.
Procurada, a ANTT disse que “tentou realizar uma sessão presencial em Itaituba (PA)” em dezembro de 2017, mas que “os indígenas impediram a entrada dos participantes e o evento teve que ser cancelado.”
M?krãnõtire, contudo, afirma que as manifestações de indígenas podem ter sido mal interpretadas pelo governo. “Tem aldeia com movimentos grandes [de resistência], mas queremos ser ouvidos. Nunca um representante do governo se manifestou para falar com as lideranças.”
A agência reguladora afirma que vai realizar nova sessão presencial “ainda no mês de agosto”, mas não confirmou a data.
“Tendo em vista a hostilidade que a agência foi recebida naquela ocasião, estamos enfrentando dificuldades para encontrar local para realizar o evento. Dependemos de apoio das instituições de segurança pública para salvaguardar a integridade física dos servidores da ANTT, o patrimônio público e as instalações físicas do local a ser contratado.”
Para o advogado Silvio Martinho, que representa , “de fato houve manifestação dos índios, mas a ANTT cancelou uma audiência também em Novo Progresso, mesmo sem protestos da comunidade local”.
Viabilidade
O projeto da Ferrogrão também é visto com ceticismo por grandes investidores nacionais ouvidos pela reportagem. Para eles, os riscos ambientais e políticos são altos e o investimento de R$ 16,6 bilhões projetado pelo governo subestima os custos para entregar a malha.
O conceito da ferrovia faz sentido, segundo o diretor de um fundo de investimento. A concorrência com outros projetos de custo menor, como a Malha Paulista ou mesmo a Fico, porém, reduz a atratividade do projeto.
Além disso, diz ele, nem mesmo grandes companhias agrícolas e produtores rurais, os principais apoiadores do projeto, têm se disposto a participar do financiamento ou mesmo da construção.
Os estudos de viabilidade existentes até o momento, segundo um advogado que assessora grandes grupos em projetos de infraestrutura e um diretor de grupo logístico, são insuficientes. Há a possibilidade de que o risco do projeto esteja subestimado, segundo eles, o que mina o interesse de investidores.
Além disso, as condições geológicas da região amazônica não são bem conhecidas, o que aumenta o grau de incerteza, argumentam eles.
Usar como base a área que hoje ocupa a BR-1636, como sugere o estudo de viabilidade, traria custos adicionais, segundo um executivo familiarizado com o projeto. Isso porque os terrenos pelos quais passa a estrada possuem inclinações que não são consideradas no projeto e que precisariam ser atenuadas para viabilizar a ferrovia.
O prazo para a conclusão da obra, de acordo com o executivo, superaria no melhor dos casos os 10 anos, o que adicionaria riscos políticos com as eventuais trocas de governo e de políticas públicas na área do meio ambiente.
A ANTT afirma que os estudos que embasam foram feitos pela EDLP (Estação da Luz Participações) e foram analisados pela estatal EPL (Empresa de Planejamento e Logística), que dá suporte técnico à modelagem de concessões ao ministério da Infraestrutura.
Fonte: Folha SP