Brasil se transformaria em uma “roça” se exportasse apenas commodities e matérias-primas, afirma presidente da CNI
A fala do presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Carlos Von Doellinger, ao Valor, na qual defendeu que o Brasil deixe de apoiar a indústria e coloque foco em suas vantagens comparativas, como agronegócio e a mineração, provocou mal-estar e forte reação no setor industrial. A visão é que o Brasil não pode ser comparado com países com população muito menor, como Austrália, e precisa, sim, desenvolver a indústria como fonte de geração de empregos e de aumento da renda.
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“Essa posição demonstra que o presidente do Ipea, lamentavelmente, não tem a mínima noção da importância da indústria para a produtividade e o desenvolvimento dos demais setores da economia”, disse ao Valor, em nota, o presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Robson Andrade, falando também pelas 70 associações do Fórum Nacional da Indústria.
“Não estou subestimando a importância dos setores agrícola e mineral. Mas o fato é que o Brasil se transformaria em uma roça, a fazenda do mundo, exportando apenas commodities e matérias-primas, assim como empregos de qualidade, para as economias mais desenvolvidas”, diz.
A CNI destaca que apenas a indústria manufatureira nacional é responsável por 25% da arrecadação federal. Responde por 50,6% das exportações e por 65% dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento. E cada R$ 1 produzido na indústria de transformação gera R$ 2,40 na economia nacional. Na agricultura é R$ 1,66, e, no comércio e serviços, R$ 1,49.
Para o diretor da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim) André Cordeiro, o raciocínio de Doellinger repete a lógica da medida tomada pela rainha Maria I, há mais de dois séculos, quando proibiu fábricas e manufaturas no Brasil. “Isso não deu certo. A indústria que é capaz de gerar maior renda e bem-estar para a população. O Brasil não pode se dar ao luxo de concentrar atividades. Não pode prescindir de uma indústria grande e de base tecnológica”, diz Cordeiro.
Ele afirma ainda que o problema do Brasil é seu elevado custo para se produzir, em termos tributários e de outras obrigações. Nesse sentido, explica, não poderia nem ser considerado alto o volume de mais de R$ 300 bilhões em gastos tributários, um quinto do chamado “custo Brasil”. “Nossa indústria é competitiva e eficiente. Nossos grandes problemas são logística, custo de capital alto, falta de segurança jurídica e uma carga tributária elevada”, salientou.
O presidente-executivo da Associação das Indústrias de Vidro (Abividro), Lucien Belmonte, demonstrou muita contrariedade com as declarações. Para ele, o raciocínio de Doellinger é como se estivesse dizendo que a montadora Ford fez bem em sair do Brasil.
“É impressionante em um país com indústria ampla e diversificada ouvir algo assim. É uma desconexão com a realidade brutal. No fim das contas, a gente não é necessariamente competitivo porque temos o governo mais caro do mundo”, afirmou, referindo-se a questões como custo tributário, energético e logístico. “A gente não está pedindo proteção. A nossa carga tributária é muito mais alta que as de serviços e agro, é uma questão de reforma tributária.”
O vice-presidente da Fiesp e presidente da Associação Brasileira da Indústria de Plástico (Abiplast), José Ricardo Roriz Coelho, também atacou a fala de Doellinger. “É lamentável que ele tenha este conceito equivocado do papel da indústria”, disse, atacando a comparação com a Austrália. “Os países que tiveram uma participação expressiva da indústria no PIB chegaram muito mais rápido ao grau de desenvolvimento”, acrescentou. E disse que a indústria brasileira ajudou a desenvolver a agricultura.
Para o consultor Welber Barral, da BMJ Consultores Associados, em teoria, o Brasil tem de aproveitar suas vantagens comparativas, porém, com mais de 200 milhões de pessoas teria dificuldade para criar renda e emprego só com a produção agrícola, que remunera pouco o trabalhador e passa por processo de mecanização. E o setor de serviços não é desenvolvido o suficiente para absorver os trabalhadores. “Na prática, o risco de problemas sociais é muito alto,”
Lembrou que os EUA são grandes exportadores de commodities, com serviços desenvolvidos e não abriram mão da indústria. Ressaltou que o setor é penalizado pelo sistema tributário desde 1988, enquanto agricultura exportadora e mineração pagam pouco e serviços têm regimes especiais. “O Brasil tem muito a dar em competitividade para a indústria, principalmente com a reforma tributária.”
Para o professor da UnB José Oreiro, Doellinger fala como se a indústria fosse “algo que está acima da capacidade cognitiva dos brasileiros”. “Esse é um argumento ridículo e totalmente contrário à evidência empírica disponível. Entre 1930 e 1980, o Brasil cresceu a uma taxa média de 8% ao ano puxado pelo crescimento do setor manufatureiro”, disse. “Vantagens competitivas não são um dado da ‘natureza’; mas são construídas ao longo do tempo”, completou.
Fonte: Valor