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Estudos sobre oceanos e mudanças climáticas indicam motivos para preocupação nas próximas décadas
Já faz tempo que o Brasil não é mais tão privilegiado quando o assunto são catástrofes naturais. Como não poderia ser diferente do restante do mundo, o país já sofre com as mudanças climáticas, que vem causando estragos nos últimos anos. Por conta do
aquecimento global, a situação agora demanda ampliação de linhas de pesquisa para entender o que está por vir.
O cenário é descrito pelo chefe de equipe de Operações Offshore do Grupo Cepemar, Carlos Augusto Fonseca. Segundo o físico, os recentes eventos climáticos têm atraído especialistas de vários países a fim de conhecer melhor a parcela sul do oceano Atlântico e entender melhor o impacto que essas mudanças podem trazer para o clima da América do Sul e no mundo nos próximos anos. Fonseca enfatiza que as alterações podem, inclusive, prejudicar a indústria naval e offshore. Prejuízos de grandes proporções, como os que ocorreram no Japão este ano, preocupam esses setores e os levam a tentar se precaver desses desastres.
Fonseca confirma que o Brasil é privilegiado em alguns aspectos climáticos. Ele cita as frentes frias que atualmente atingem o país, mas sem força suficiente para formar furacões. “Somos privilegiados, já que elas [massas de ar] vêm em forma de frente fria porque não existe calor suficiente na parte oceânica onde essas frentes frias passam para organizar melhor a estrutura”, analisa. Ele explica que, em outras regiões do planeta, essas estruturas absorvem calor da atmosfera, assumindo grande proporção. De acordo com Fonseca, isso é possível em áreas como o Mar do Caribe, em que as temperaturas da água chegam a 29 graus Celsius no período de julho a setembro. “No Brasil, temos essa sorte porque a ciclogênesis que pegamos geralmente vem da região da confluência Brasil-Malvinas [duas correntes oceânicas] e as formações ali geralmente são frentes frias porque não têm esse tempo para se estruturar”, detalha.
As mudanças climáticas podem representar modificações radicais na logística de transporte do comércio internacional. Oceanos mais altos, por exemplo, significariam portos tais como os conhecemos hoje, alagados. Da mesma forma, mudanças no regime nas marés implicariam, na melhor das hipóteses, novos desenhos de janelas de atracação. Alteração de correntes marítimas, por sua vez, levaria à adoção de novas estratégias de navegação, possivelmente alterando rotas e consumo de combustível. Eventos como tempestades em alto-mar, que tendem a se tornar mais comuns, poderiam tornar obsoletos os navios hoje existentes. Esse é um quadro hipotético, mas factível já nas próximas décadas, já que o mundo continua expandindo o consumo energético em bases não renováveis.
O aumento do nível dos oceanos é um dos fenômenos climáticos mais conhecidos da população mundial. Isso porque as pessoas ouvem falar da relação entre o aquecimento do planeta e o derretimento das geleiras. Fonseca destaca que existem modelos de circulação oceânica gerados, de tempos em tempos, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, em inglês), que fazem uma série de simulações com o objetivo de monitorar esses eventos. “O impacto disso para a indústria naval e offshore é óbvio. O nível do mar eleva e, com isso, todas as estruturas portuárias e costeiras podem eventualmente ficar embaixo d’água”, diz.
Fonseca alerta que a circulação oceânica presenciada normalmente funciona somente com a condição que temos hoje. Segundo o físico, essa circulação mudará em larga escala nos próximos anos, o que pode afetar o balanço que temos de circulação marinha atualmente, alterando as correntes marítimas de alguma forma. Ele conta que participou de um trabalho junto ao Departamento de Furacões da Flórida (National Hurricane Center), onde existe uma enorme preocupação com o aquecimento global e com o aumento do número de tempestades, não só na quantidade, mas no tamanho dos eventos. “Isso é drástico. Imagine uma estrutura, como uma FPSO ou uma plataforma, num lugar pacífico, como o Brasil, de repente, sendo submetido ao potencial de um furacão. A passagem de furacões da forma que temos hoje é um grande problema para o golfo do México. As estruturas têm que ser movimentadas. Na passagem do Katrina, em 2005, ocorreu uma série de danos para a indústria petroleira com todas essas estruturas. Numa área no Brasil em que não estamos acostumados com esse tipo de tempestade e, de repente, começamos a ter, imagine a catástrofe que acaba sendo gerada”, aponta.
Fonseca ressalta que não é possível afirmar se haverá o aumento das temperaturas dos oceanos de forma a permitir a formação de furacões. No entanto, a hipótese não é descartável. “Existe calor no oceano para que essa estrutura cresça e se organize melhor. Mas, com um cenário de aquecimento global, pode ser que aumente a temperatura do oceano e, posteriormente, pode ocorrer isso”, observa.
Segurança. Para Maurício Aguiar Giuntini, superintendente Marine da Liberty Seguros, as seguradoras sempre estiveram preocupadas com as grandes catástrofes naturais, que geram grandes perdas. No entanto, ele revela que o segmento observa com surpresa a grandeza dos desastres ocorridos nos últimos anos por conta do clima. Em 2005, catástrofes naturais causaram US$ 200 bilhões de perdas. Em 2011, as perdas superaram os US$ 265 bilhões já no meio do ano. Ele explica que essas grandes catástrofes diminuem as receitas das resseguradoras, impactando no aumento dos custos dos seguros. “No momento em que você começa a ter uma série de sinistros, como no Japão, Nova Zelândia, mesmo o Rio de Janeiro — como aconteceu na serra — as grandes resseguradoras começam a perder receita e elas têm de começar a contrabalançar, aumentando os prêmios”, avalia.
“Dizia-se que o Brasil era imune a catástrofes naturais. Estamos vendo que não é bem assim. Os estaleiros perto de encostas ou num estuário já entram na avaliação de risco. As seguradoras têm de começar a usar de artifícios mais aprimorados para entender qual é a real exposição dela”, alerta. Por conta disso, Giuntini observa que as grandes seguradoras começam a contratar engenheiros especializados para análise de risco. Além disso, ele lembra que a indústria naval brasileira ficou parada por muito tempo e que está sendo retomada nos últimos anos. “A experiência do estaleiro e da mão de obra são fatores cujos riscos devem ser muito bem avaliados. E há o risco de acúmulo. São vários navios sendo construídos, um ao lado do outro”, analisa.
Giuntini percebe ainda que as seguradoras estão adotando mudanças em cláusulas por conta do aumento das catástrofes naturais. Segundo ele, o movimento é semelhante ao que ocorreu após as ações terroristas de 2001. “As pessoas não tinham muita preocupação com o terrorismo antes do dia 11 de setembro. A partir dali, todas as seguradoras passaram a colocar exclusões relacionadas ao terrorismo. Começamos a perceber um movimento nesse sentido nas cláusulas relacionadas a catástrofes naturais”, conta.
Estudos. Carlos Augusto Fonseca, do Cepemar, afirma que os especialistas têm voltado suas atenções para o Atlântico Sul. Ele lembra que a região norte do oceano está bem mapeada e que a tendência é que ocorram novas pesquisas no sul. Ele conta que pesquisadores de países como França e Alemanha vêm estudando a costa brasileira e da África. “O Atlântico Norte é talvez o oceano mais conhecido da face da Terra. Mas a pesquisa para o Atlântico Sul, em virtude desse cenário de aquecimento global, acabou aumentando bastante nos últimos anos”, destaca.
Uma das linhas de estudos adotadas no Atlântico Sul é a expansão da rede de boias de monitoramento conhecida como Pirata (Pilot Research Moored Array in the Tropical Atlantic, em inglês). Semelhante ao sistema de boias do oceano Pacífico — utilizada principalmente para monitorar o El Niño — o sistema piloto foi ampliado no lado da costa brasileira e no lado da costa africana. “Esse projeto foi expandido para tentarmos entender melhor essa circulação no Atlântico Sul. Existem muitas questões que estão em falta”, diz. Entre essas questões, ele cita a posição da bifurcação de correntes marítimas, a variabilidade que geram as correntes no litoral brasileiro, além do balanço de massa e calor do Atlântico Sul.
Apesar do interesse e das pesquisas existentes, Fonseca ressalta que os estudos sobre o clima e os oceanos devem ser ampliados. “Os investimentos ocorreram. Ainda está muito aquém do que o Brasil precisa. Existem muitas questões da própria circulação do Atlântico Sul que não são bem compreendidas. Existem muitos projetos, mas ainda estamos muito aquém do que precisamos para entender melhor do que hoje a circulação do Atlântico Norte”, destaca.
O NOAA (The National Oceanic and Atmospheric Administration), do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, possui um projeto com navios que cruzam da África do Sul até a América do Sul tentando entender esse balanço de calor do Atlântico. Segundo Fonseca, existe uma espécie de cinturão, conhecido como conveyor belt, que distribui calor e salinidade entre todos os oceanos. A circulação possui um ramo no Atlântico, que passa pelo Oceano Índico, tentando conectá-los. “É essa circulação que precisamos entender bem. Com o aquecimento global, um desequilíbrio na temperatura afeta diretamente esse cinturão. Em alguns lugares, como no Atlântico Norte, o conveyor belt é bastante estudado. No Atlântico Sul e Índico ainda há questões para serem resolvidas”, destaca.
Fonseca explica que esse projeto utiliza navios porta-contêineres, geralmente uma linha de contêiner que é feita com certa frequência, saindo da África do Sul para a América do Sul. Nesse trajeto pelo oceano Atlântico, são lançados ao mar instrumentos usados em oceanografia física chamados de XBTs. Esses dispositivos são uma espécie de torpedo pequeno com eletrodos. Ele explica que o XBT mede um perfil de temperatura até mais ou menos 700 metros, sendo jogados sem qualquer alteração na velocidade e na operação do navio. “No final, quando ele atinge a costa brasileira, há uma medição de toda temperatura no Oceano Atlântico”, destaca.
Cada um desses medidores custa entre US$ 50 e US$ 60. Fonseca diz que a medição ainda está muito distante da ideal. “Só estamos enxergando 700 metros. Já sabemos que os sistemas chegam até cinco quilômetros. Existem muitos processos costeiros que ainda não são bem compreendidos. As questões da circulação oceânica em geral no Brasil precisam ser respondidas”, relata.
Uma vez que se entende a circulação, é possível compreender com mais precisão como está funcionando a distribuição de temperatura, de salinidade, de oxigênio, além de se conseguir prever melhor, por exemplo, a época de pesca e porque certas espécies desaparecem em determinadas épocas do ano. Fonseca destaca ainda que os projetos estão se tornando cada vez mais multidisciplinares. Segundo ele, os processos estão interligados, o que torna necessária uma comunicação maior entre as áreas de trabalho. “A Petrobras já entendeu que é preciso ter projetos que envolvam todas as áreas do conhecimento para realmente se ter uma dimensão exata do problema. Quanto mais se conhece da área, mais segura fica sua operação”, afirma.
O professor João Luiz Nicolodi, do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal de Rio Grande (IO-Furg), diz que o poder público deveria trabalhar em duas frentes de estudos. Uma delas seria a mitigação para atenuar as causas das mudanças climáticas. A outra seria a adaptação, que diz respeito a modificar as atividades humanas em função disso. Nicolodi destaca que as mudanças climáticas possuem interferência direta na navegação. O professor ressalta que o aumento da frequência e intensidade de tempestades é algo que vem sendo objeto de estudos em todo o mundo. Segundo ele, ainda não existem dados concretos no Brasil sobre isso, embora os indícios sejam estes. “O fato de não possuirmos séries longas e confiáveis de dados de ondas e marés é o principal obstáculo para este tipo de pesquisa. No caso da navegação fluvial, o aumento na taxa de precipitação em determinadas regiões pode desencadear uma intensificação dos processos erosivos em bacias hidrográficas, contribuindo para o assoreamento de rios”, comenta.
De acordo com Nicolodi, as tempestades em maior intensidade e fre-quência devem ser os principais fatores que influenciarão na navegação nos próximos anos, uma vez que as mesmas vêm acompanhadas de aumento na ondulação e ventos. Ele acredita que a elevação do nível do mar pode ter alguma influência, principalmente nas regiões portuárias, uma vez que as atividades das mesmas (calados, atracadouros, locais de descarga, etc.) foram planejadas para os níveis da época em que os terminais foram construídos. O problema é que a elevação do nível do mar é relativa, podendo, por exemplo, subir em São Paulo e não necessariamente subir em Pernambuco.
“Os resultados ainda são incipientes, pois estes tipos de estudos são de longo tempo, mas, sem dúvida, há regiões mais vulneráveis em termos de mudanças climáticas, e que, por consequência, poderão ser vulneráveis ao segmento de portos e navios. Em termos de eventos extremos, as regiões Sul e Sudeste do Brasil são especialmente vulneráveis a isso”, observa.
No mundo, já existem casos de eventos climáticos que estejam causando impacto nas atividades portuária e de navegação. O professor titular em Obras Hidráulicas Fluviais e Marítimas da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), Paolo Alfredini, cita que a navegação pelo Mar Ártico está sendo possível por mais tempo ao longo do ano, o que vem encurtando as distâncias das rotas Ásia-América.
Alfredini participa de projeto no laboratório de hidráulica da Poli-USP que estuda a situação do porto de Santos em modelo físico e matemático. O estudo, desenvolvido há dois anos, integra o Projeto Nacional de Ações Integradas Público-Privadas para Biodiversidade (Probio) do Ministério de Ciência e Tecnologia. A Capes também possui um projeto há quatro anos para estudar o litoral Norte paulista, onde existe uma importante área portuária.
No Brasil, Alfredini defende que é preciso investir em estudos e pesquisas para diagnosticar seriamente e quantitativamente os impactos. Segundo o professor, somente assim será possível planificar as ações e as obras. Ele destaca que os estudos da costa brasileira ainda não são conclusivos e que os 8,5 mil quilômetros de litoral certamente podem apresentar problemas.