O descarte da água de lastro em portos brasileiros voltou ao centro das atenções do setor marítimo em razão de uma norma editada pela Autoridade Portuária de Santos (APS) em 2024. A exigência de apresentação de atestado de conformidade ambiental para navios que realizassem o descarte no Porto de Santos mobilizou não apenas os armadores, mas também a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e, naturalmente, o Poder Judiciário. O tema, que à primeira vista pode parecer técnico, envolve pontos sensíveis como a competência normativa das autoridades portuárias, o papel regulador da ANTAQ e os custos operacionais da navegação no Brasil.
O Brasil é signatário da Convenção Internacional para o Controle e Gerenciamento da Água de Lastro e Sedimentos de Navios (BWM/2004), adotada pela Organização Marítima Internacional (IMO). A convenção, ratificada em 2022 e promulgada por meio do Decreto nº 10.980/2022, estabelece padrões técnicos obrigatórios para navios que operam em águas internacionais, incluindo requisitos como a adoção de planos de gerenciamento, manutenção de registros e limites específicos para descarga (Regras D-1 e D-2). Ainda que abrangente em suas disposições, a convenção não prevê, expressamente, a exigência de certificações adicionais locais emitidas por agentes autorizados nas áreas portuárias.
Complementando esse arcabouço, a Marinha do Brasil edita normas técnicas aplicáveis à navegação em águas jurisdicionais brasileiras. A NORMAM 203/DPC disciplina as exigências para embarcações estrangeiras, incluindo a obrigatoriedade de Plano de Gerenciamento de Água de Lastro (PGAL) aprovado e apresentação do Ballast Water Reporting Form (BWRF) antes da atracação. Já a NORMAM-401/DPC aplica-se a embarcações brasileiras e também estabelece exigências técnicas compatíveis com os padrões internacionais. Ambas as normas contêm previsões sobre fiscalização, documentação e eventuais penalidades, mas não determinam a obtenção de certificações locais emitidas por terceiros como condição para operação.
Em 21 de agosto de 2024, a APS publicou a norma NAP.SUMAS.OPR.023.2024, exigindo atestado de conformidade ambiental como requisito para o descarte da água de lastro no Porto de Santos. A justificativa central foi a proteção do meio ambiente marinho local, com destaque para o risco de introdução de espécies invasoras. A medida, no entanto, foi imediatamente contestada por entidades representativas do setor de navegação, como Centronave e ABAC, que alegaram que a exigência criava entraves operacionais, custos adicionais (estimados entre R$ 6 mil e R$ 8 mil por embarcação) e risco de monopólio, já que a certificação seria emitida por apenas uma empresa credenciada (AOS).
A ANTAQ interveio administrativamente, suspendendo os efeitos da norma da APS com base na Resolução nº 62/2021, que delimita as competências das autoridades portuárias. Para a agência reguladora, a APS teria extrapolado sua competência ao criar norma de natureza regulatória sem respaldo em ato normativo federal, e sem observar os princípios da livre concorrência e isonomia no acesso aos portos públicos.
A questão foi então judicializada. Em 13 de fevereiro de 2025, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região deferiu liminar em favor da APS, entendendo que a ANTAQ não poderia anular unilateralmente uma norma editada pela administração portuária local com fundamento em sua autonomia para tratar de questões ambientais. A decisão, embora provisória, teve o efeito de restaurar a exigência do atestado.
Nos meses seguintes, o cenário tornou-se ainda mais complexo. No dia 15 de julho de 2025, a revista Portos e Navios noticiou a existência de decisões judiciais conflitantes proferidas no mesmo dia: de um lado, foi concedida nova liminar favorável à APS; de outro, uma decisão cautelar beneficiou os armadores, impedindo que a APS editasse normas com efeitos regulatórios sem anuência expressa da ANTAQ. Esse quadro acentuou a insegurança jurídica e operativa no maior porto do país.
De um lado, os armadores sustentam que a norma da APS representa um custo injustificável, cria um modelo de certificação monopolista e afronta os princípios da legalidade e segurança jurídica. De outro, a APS argumenta que a proteção ambiental demanda instrumentos adicionais de controle, especialmente diante da ineficácia, a seu ver, de mecanismos de fiscalização existentes. A tensão entre descentralização da gestão ambiental e centralização da normatização federal continua sendo o ponto de fricção.
O debate evidencia uma clássica colisão entre a competência da ANTAQ para regular a atividade portuária nacional e a autonomia das autoridades portuárias locais para implementar políticas de proteção ambiental. A ausência de uniformidade jurisprudencial e a falta de uma diretriz definitiva das instâncias superiores contribuem para que o tema continue em aberto e envolto em incertezas.
Diante disso, é imperioso que o setor marítimo acompanhe atentamente os desdobramentos dessa controvérsia. O equilíbrio entre segurança ambiental, previsibilidade regulatória e liberdade econômica será decisivo para a conformação do modelo brasileiro de gestão portuária nos próximos anos.
Bernardo Mendes Vianna é sócio da área Marítima do Vieira Rezende Advogados
PUBLICIDADE