Por Omar Rached*
AFRMM – sinônimo de intervenção estatal inadequada e fonte de corrupção
Um custo suportado por décadas pelos importadores e consumidores não se sustentaria ao longo de décadas se não fosse por influência de grupos de interesse que se apropriam dos valores arrecadados a título de contribuição de intervenção estatal na economia. Tais grupos são conhecidos já há décadas por sua atuação política no setor de concessões portuárias e no setor da indústria petrolífera e serviços conexos.
O Brasil vem travando uma luta para se tornar um ambiente menos suscetível à corrupção, para poder se reinserir no comércio exterior mundial e trazer divisas e investimentos ao País. Nesse contexto, se torna muito difícil explicar a qualquer um como o Brasil mantém uma contribuição de intervenção no domínio econômico de algo que não intervém economicamente há mais de 30 anos. Pior ainda é explicar que essa intervenção discrimina o frete internacional ofertado por empresas brasileiras do oferecido de empresas estrangeiras, impõe o conteúdo nacional na construção das embarcações mercantes, exige a prestação de mais de uma centena de informações ao governo e ainda por cima desapropria ou confisca temporariamente as cargas importadas caso o AFRMM não seja pago.
O AFRMM estava quase extinto no início do novo milênio. O FMM estava esvaziado e tomado por constantes escândalos de corrupção envolvendo a antiga Superintendência Nacional da Marinha Mercante – SUNAMAM. Mas em 2003 algo aconteceu. Estimulado pela exploração do pré sal, os partidos políticos que viriam a controlar o Ministério dos Transportes e Ministério da Fazenda, traçaram uma estratégia para reavivar o moribundo e quase morto AFRMM, já com a intenção de utilização do mesmo para fins partidários e de apropriação indébita. Era necessário encher o cofre novamente, que estava vazio devido à ineficácia da fiscalização do recolhimento do AFRMM pelo Ministério dos Transportes.
E assim o fizeram. De um convênio entre os citados ministérios, a arrecadação e fiscalização do AFRMM passou a ser de responsabilidade da Receita Federal do Brasil, a partir da promulgação da Lei 10.893 de 2004. O interessante é que a Receita Federal ficaria apenas com o ônus da fiscalização e arrecadação, sem reversão alguma do produto do tributo arrecadado, algo muito incomum ao órgão. Desse convênio foi desenvolvido o sistema Mercante, também conhecido como CE Mercante, que tem como função o recolhimento do AFRMM e alimenta de dados o Siscomex Carga da Receita Federal, sistema utilizado para a gestão de riscos na cadeia logística.
Contextualizando o tema, sabemos que é ilegal discriminar o serviço nacional do importado, desde que aderimos às regras multilaterais da OMC em 1995. A exigência de conteúdo nacional já foi denunciada à mesma OMC e considerada ilegal diante das regras do comércio internacional, nos casos do programa Inovar-Auto, Lei da Informática e Lei do Bem (todas já revogadas).
Nossos estaleiros estão todos quebrados, sem exceção. A maciça maioria está falida ou em recuperação judicial. Houve demissão em massa em todo setor de construção naval no Brasil, fartamente noticiada pela mídia. Tais estaleiros não podem ser recipientes de encomendas, diante do grave quadro financeiro em que se encontram. Mas mesmo que estivessem em condições normais de funcionamento, não receberiam pedidos de navios mercantes, já que o AFRMM apoia o desenvolvimento da construção das embarcações, mesmo assim não haveria encomendas. Quais os motivos?
Nossos estaleiros não possuem condições mínimas de oferecerem preços competitivos, mesmo que quisessem construir as embarcações no Brasil, a competitividade nacional é castigada por alta carga tributária, baixo investimento em tecnologia e a necessidade de importação dos itens tecnológicos, que compõem o maior valor da venda. Para agravar ainda mais o quadro da inviabilidade do Brasil concorrer no disputado mercado internacional de fretes, faz-se necessário apontar que o alto valor de seguro internacional para embarcações brasileiras.
Somando às facilidades de arrendamento de navios de bandeira de conveniência, afasta terminantemente qualquer possibilidade de um reavivamento de nossa indústria de construção naval para o produto de embarcações mercantes. Adicionando mais fatores a esse raciocínio, o potencial comprador não conseguiria fechar um preço competitivo para o produto nacional, seja para navio ou frete. Sempre vale mais a aquisição do importado.
No mais, precisamos lembrar que a finalidade da marinha mercante é vender frete internacional. Não há empresa nacional que se dedique a esse serviço e provavelmente nunca existirá pelo simples fato que o custo geral do Brasil é impeditivo, tanto em construção, tripulação, impostos, seguro e manutenção. Não existe no momento a demanda por frete internacional por empresa nacional e provavelmente não existirá porque o mercado é altamente concentrado e não há como reverter esse quadro. É a dura realidade.
Os fundos do AFRMM, cumpre ressaltar, são empréstimos que servem para equalizar a taxa de juros do Brasil e exterior de empréstimos para esses projetos, que envolvem valores vultosos, pela própria natureza do produto. Atualmente, de nada adianta o empréstimo a juros menores porque o principal ainda deve ser pago ao BNDES. Chegamos a um ponto de termos que admitir que a estratégia do Fundo da Marinha Mercante (FMM) que é alimentado pela arrecadação do AFRMM falhou totalmente em sua estratégia, tornando-se um fardo inútil carregado pela sociedade e um buraco escuro onde operam interesses nada transparentes ávidos a distribuir recursos públicos e distribuir renda ao contrário, onerando a sociedade e enriquecendo alguns espertos.
Não se trata apenas da ilegalidade da cobrança do AFRMM e sua excessiva onerosidade, mas sim de admitir que os objetivos estabelecidos em lei para justificar a intervenção estatal não podem ser cumpridos. E nem poderão, pela própria vantagem econômica comparativa, pender para poucos países que investiram muito nesse nicho de construção de embarcações e naturalmente se distanciaram em termos de tecnologia, retorno do investimento, segurança e valor agregado. Para reposicionar nossa indústria naval mercante precisaríamos de centenas de bilhões de dólares de investimentos e o AFRMM arrecada anualmente cerca de 4 bilhões de reais, aproximadamente 1 bilhão de dólares. Ou seja, o modelo de cobrança direta ao importador está falido há muito tempo e é hora de ser extinto, podendo existir uma nova política pública que reavive a Marinha Mercante sem aumentar os custos de importação.
Ao longo dos anos que seguiram, a eficiência arrecadatória da Receita Federal e a vinculação sistêmica entre o CE Mercante do Ministério dos Transportes e o Siscomex Carga fizeram com que o AFRMM voltasse a ser relevante em termos de arrecadação, com as cifras de bilhões de reais. No entanto, nenhum navio mercante foi construído e os fundos continuam a ser geridos da forma mais adequada para a disseminação da corrupção, desvio e apropriação indébita do AFRMM.
No ano 2015, um membro do Senado Federal requereu ao TCU uma auditoria completa sobre o AFRMM: fonte de custeio, controles internos e principais recipientes dos recursos. O Ministério dos Transportes, que administra o Fundo da Marinha Mercante informou, em resumo:
- que não possui controles internos relativos ao fundo da marinha mercante (FMM);
- que não divulga ou publica quais são os requisitos para a concessão de empréstimos que utilizam o dinheiro do FMM;
- que os maiores recipientes do FMM são empresas que têm participação societária de corporações investigadas ou condenadas pela operação anticorrupção também conhecida como “Lava Jato”.
A conclusão direta dessa auditoria, cujo resultado é público, disponível a todos na internet, não é surpreendente, já que tanto a administração quanto os critérios de utilização do AFRMM sempre foram opacos e sujeitos a toda sorte de escândalos, noticiados ou não. Fica claro que a existência e longevidade do AFRMM está ligada a determinados partidos políticos que, de forma patrimonialista, desviaram os fundos da marinha mercante e mantiveram o poder decisório de definição de critérios de sua utilização. Obviamente, um prato cheio para a corrupção.
Conclusão
O AFRMM é imoral, ilegal e inútil. Se trata de um custo vazio que atrapalha a inserção do Brasil no ambiente de negócios internacionais e piora a confiança do setor privado na capacidade do Estado em medir o nível de racionalidade das intervenções no domínio econômico. Fere frontalmente o GATT e o Acordo de Facilitação do Comércio da OMC (artigos 6 e 10). Por isso, precisa ser combatido com todo rigor e energia em busca de que seja o AFRMM extinto em todo seu espectro de atuação.
No momento atual, onde todos esforços convergem para a facilitação do comércio, redução de custos invisíveis e liberalização do comércio, a medida adequada e correta é a eliminação do AFRMM, bem como a revogação de todas normas vigentes que obriguem seu recolhimento.
Omar Rached é advogado e MSc em Logística
*Continuação de AFRMM – uma anomalia brasileira (parte 1)
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