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Artigo - Implicações da decisão do STJ para isenção de demurrage por retenção de mercadorias pela Receita Federal

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), mais especificamente a 4ª Turma, proferiu decisão que manteve acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que isentou um importador de pagar custos de demurrage em razão de que a demora na desova das mercadorias teria sido provocada exclusivamente por parte da Receita Federal do Brasil.

Esta decisão tem gerado debates intensos no meio jurídico e comercial. Este artigo tem por objetivo esclarecer o conceito de demurrage, analisar o cerne da discussão, detalhar a decisão proferida pelo STJ, examinar as implicações desse posicionamento, apresentar os diferentes pontos de vista sobre o tema e discutir os impactos da greve dos auditores-fiscais da Receita Federal.


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O termo demurrage refere-se à taxa cobrada pelos armadores (donos dos navios e contêineres) quando os prazos estabelecidos para a utilização e devolução dos contêineres são excedidos pelo importador ou consignatário. Em essência, essa cobrança funciona como uma penalidade contratual para compensar os prejuízos decorrentes do atraso na liberação dos equipamentos, que ficam indisponíveis para novas operações logísticas. Dessa forma, a demurrage tem um duplo papel: desestimular a demora na devolução dos contêineres e assegurar que os custos decorrentes dos atrasos sejam repassados à parte considerada responsável.

A controvérsia que originou o caso em análise concentra-se na atribuição da responsabilidade pelo pagamento da demurrage. No caso específico, um armador ingressou com ação de cobrança contra um importador, alegando que a devolução intempestiva dos contêineres acarretou prejuízos, justificando a cobrança de uma taxa elevada – na ordem de aproximadamente US$ 410 mil.

No primeiro grau o armador teve êxito e o importador foi condenado ao pagamento da sobrestadia. No entanto, em grau de recurso o importador defendeu-se argumentando que o atraso na devolução não decorreu de sua própria inércia, mas sim de uma retenção dos contêineres por ato da Receita Federal do Brasil (RFB). Essa retenção, decorrente de medidas administrativas, caracterizou um “obstáculo imprevisível”, afastando a culpa do importador e, consequentemente, a obrigação de arcar com os custos decorrentes do excesso de prazo. Assim, a discussão central reside na necessidade de identificar se o atraso pode ser imputado ao importador ou se ele deve ser eximido do pagamento da demurrage em função de uma intervenção estatal que está fora de seu controle.

A 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) havia decidido, inicialmente, que a retenção dos contêineres pela Receita Federal configura uma situação que não pode gerar encargos ao consignatário, especialmente quando essa medida afeta comerciantes e empresas de pequeno porte. Esse entendimento baseou-se na ideia de que a retenção, por ser uma decisão subjetiva da autoridade administrativa, constitui um obstáculo imprevisível que não pode ser imputado ao importador.

Conforme se verifica em trecho extraído do Acórdão do TJSP: “Essa questão de retenção e cobrança da demurrage deve ser objeto de ampla discussão e acertamento entre a entidade alfandegária e os agentes envolvidos na operação de importação e ou exportação, porque a retenção afasta a cobrança.”

Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou essa linha de raciocínio. O tribunal manteve a isenção do pagamento da demurrage para o importador, entendendo que, embora o ato da Receita Federal não tenha sido arbitrário, os contêineres não estavam sob a custódia do importador no momento da retenção. Dessa forma, o STJ consolidou o entendimento de que a responsabilidade pelo pagamento da taxa não deve recair sobre o importador quando o atraso decorre de atos administrativos, criando um precedente importante para a proteção dos direitos dos operadores de comércio exterior.

A decisão do STJ possui diversas implicações tanto para o setor de comércio exterior quanto para as relações contratuais no transporte marítimo, quais sejam:

• Proteção dos importadores: ao afastar a responsabilidade do importador pelo pagamento da demurrage quando o atraso decorre de retenções pela Receita Federal, a decisão proporciona maior segurança jurídica, especialmente para pequenas e médias empresas que, muitas vezes, não possuem condições financeiras para suportar custos adicionais imprevistos. Neste cenário, é importante destacar que, por vezes, os custos de armazenagem e sobrestadia superam o valor da mercadoria e podem até inviabilizar o negócio do importador;

• Revisão das cláusulas contratuais: o entendimento firmado pode levar a uma reavaliação das cláusulas contratuais nos contratos de transporte marítimo. Os armadores e demais envolvidos poderão buscar renegociar os termos relativos à cobrança de demurrage, prevendo cenários de atraso que não sejam imputáveis aos importadores;

• Possíveis demandas contra o Estado: com o precedente favorável, há a possibilidade de que outros importadores, em situações semelhantes, pleiteiem indenizações ou danos morais contra o Estado, caso a retenção dos contêineres venha a prejudicar as relações comerciais. Essa perspectiva sugere que o Estado poderá ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de suas próprias decisões administrativas. Além disso, existe ainda a perspectiva de que o próprio armador ingresse contra o Estado, uma vez que, não podendo cobrar os valores diretamente do importador, possa direcionar a responsabilidade ao Estado, alegando que o contribuinte não pode ser penalizado pela demora da Administração Pública;

• Precedente para situações de greve: em períodos de paralisação ou greve na Receita Federal, que frequentemente resultam em retenções prolongadas de mercadorias, o julgamento reforça a ideia de que atrasos originados por atos administrativos não podem ser repassados como ônus aos importadores.

O caso em questão gerou divergências entre especialistas e operadores do mercado:

A favor da isenção: alguns defendem que a retenção dos contêineres por parte da Receita Federal é um ato que foge ao controle do importador, sendo, portanto, injusto que este arque com os custos decorrentes de um atraso que não lhe foi imputável. Essa linha de pensamento destaca que, sobretudo em períodos de instabilidade administrativa – como em greves – impor a demurrage pode comprometer a viabilidade financeira de pequenos negócios.

Responsabilidade integral do importador: por outro lado, há a visão de que o risco inerente à importação é do próprio importador, que conhece e concorda com todos os termos do contrato quando assinado. Para esta linha de raciocínio, ao assumir o risco da importação, o importador deve tomar as medidas necessárias para devolver os equipamentos ao armador ou indenizá-lo, podendo, posteriormente, buscar a restituição dos valores junto ao Estado. Essa posição ressalta, sobretudo, que os riscos operacionais da importação são previamente assumidos contratualmente.

Compensação e danos morais: complementar ao item anterior, há quem defenda que o importador, se for compelido a pagar a demurrage, deve posteriormente buscar compensação judicial junto ao Estado pelos prejuízos sofridos, inclusive por danos morais. Essa abordagem propõe uma redistribuição dos ônus, onde o Estado seria responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de suas próprias medidas administrativas.

Além disso, a greve dos auditores-fiscais da Receita Federal, caracterizada por ações como operação-padrão, desembaraço zero e devolução de processos, tem causado impactos significativos para as empresas que dependem do comércio exterior. A paralisação dos serviços essenciais resulta em atrasos expressivos nos processos de importação, gerando custos adicionais com armazenagem, descumprimento de prazos contratuais e riscos de interrupção das operações produtivas. Esse cenário compromete a competitividade das empresas e prejudica a previsibilidade de suas atividades.

Além dos prejuízos econômicos, a greve intensifica a insegurança jurídica para os operadores de comércio exterior. A imprevisibilidade das ações da Receita Federal durante a paralisação expõe as empresas a riscos operacionais, criando um ambiente instável que desestimula investimentos e prejudica as relações comerciais. A ausência de uma solução administrativa penaliza tanto o setor privado quanto os consumidores, que podem enfrentar escassez de produtos e aumento de preços.

Para mitigar esses impactos, é fundamental que os atos de fiscalização sejam realizados dentro do prazo legal, especialmente o limite de oito dias úteis previsto no Decreto nº 70.235/1972. No entanto, durante as greves, as medidas como a operação-padrão frequentemente resultam no descumprimento desse prazo, ocasionando atrasos no despacho aduaneiro e transferindo ao importador a responsabilidade por arcar com ônus financeiro pela não devolução de contêineres no prazo acordado.

Nesse cenário, com as recorrentes greves e o descumprimento sistemático dos prazos legais, a cadeia logística se torna cada vez mais vulnerável, comprometendo a competitividade do setor. Assim, a via judicial, por meio do Mandado de Segurança, torna-se indispensável para garantir a previsibilidade e a eficiência dos atos administrativos no comércio exterior.

A imposição dos riscos da importação exclusivamente ao importador leva, frequentemente, à judicialização do despacho aduaneiro como forma de pressionar a fiscalização a cumprir seus prazos e minimizar os prejuízos causados pela mora administrativa.

Portanto, a decisão do STJ de manter a isenção do pagamento da demurrage para importadores, quando o atraso na devolução dos contêineres se deve à retenção pela Receita Federal, representa um marco importante no direito do comércio exterior. Ao afastar a responsabilidade do importador diante de atos administrativos imprevisíveis, o tribunal reforça a necessidade de uma divisão mais equitativa dos riscos logísticos e contratuais.

Entretanto, a discussão permanece aberta, com argumentos sólidos de ambos os lados. Enquanto a proteção ao importador é vista como essencial para a manutenção da competitividade e da saúde financeira das empresas, há também a tese de que os riscos inerentes à importação devem ser integralmente assumidos pelo próprio importador, cabendo a este adotar medidas preventivas. Além disso, a greve dos auditores-fiscais da Receita Federal, aliada ao descumprimento dos prazos legais de fiscalização, impõe desafios adicionais, forçando a judicialização dos processos de despacho aduaneiro para garantir a liberação das mercadorias e o cumprimento dos prazos estipulados.

Independentemente do posicionamento, o debate certamente influenciará futuras negociações contratuais e poderá levar a uma reavaliação das práticas administrativas no comércio exterior, assegurando que tanto os contribuintes quanto os importadores não sejam penalizados por paralisações que fogem ao seu controle.

Bruno Felipe Ferreira é especialista em direito tributário aduaneiro do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Juliana Camargo Amaro é especialista em direito tributário contencioso e sócia do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.
Lucas Orlandi Lemos é trainee da área aduaneira do escritório Finocchio & Ustra Sociedade de Advogados.






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