Carros e aviões autônomos existem e não viraram uma realidade no trânsito e nos aeroportos. Navios com sistemas automatizados de controle de navegação e máquinas começam a ser testados na Noruega e no Japão, mas seriam eles o futuro da marinha mercante? O assunto é pra lá de complexo e envolve diversas questões relevantes dos pontos de vista econômico, jurídico, da soberania e, principalmente, da segurança da navegação.
Como vice-presidente da Associação Internacional de Práticos Marítimos (IMPA), acompanho há anos essa discussão no Comitê de Segurança Marítima da Organização Marítima Internacional (IMO). É o fórum mundial no qual o debate é travado entre os países; e de onde, porventura, virão as regulações a respeito. Vejo empolgados com o tema países fabricantes de equipamentos para essas embarcações, como a própria Noruega e a Finlândia. No entanto, a indústria marítima não enxerga esse horizonte tão próximo.
PUBLICIDADE
Navios controlados por inteligência artificial exigem um nível de sofisticação de hardware e software cujo custo de manutenção ainda é infinitamente maior do que manter uma tripulação a bordo. Não são economicamente viáveis e não se justificam dentro das margens de erro que o setor opera. Reduzir os acidentes causados por falha humana é uma solução para um falso problema, já que a indústria trabalha com invejáveis 99,998% de eficiência.
Outro ponto diz respeito à soberania dos povos. Na IMO, eu percebi o desinteresse da delegação dos Estados Unidos. Eles me disseram que não vão autorizar a entrada de uma embarcação de um país com quem tenham problemas sem que um americano suba a bordo e assuma o controle. Portanto, talvez várias operações não sejam possíveis. Não podemos ignorar também o risco de ataques cibernéticos com propósito terrorista.
Muitas coisas precisam ser ajustadas para a navegação em águas mais restritas ao tráfego, ou seja, fora de mar aberto. Entre elas, a tecnologia nos portos, que devem ser projetados para receber essas embarcações. Recentemente, o assunto foi abordado em artigo do prático Helio Sinohara e do professor da Universidade de São Paulo (USP), Eduardo Tannuri.
Ainda que seja possível com o avanço tecnológico, será necessário um período para a implementação e essas fases costumam ser longas, talvez eu esteja até aposentado, sem ceticismo.
Os desafios envolvem ainda a seara jurídica. Uma vez na Amazônia, eu tinha uma canoa com dois pescadores atravessando a minha proa. Na posição em que eu estava e com sol na cara, eu não os via e um radar não foi desenhado para identificar embarcações menores. Quando o chefe de máquinas no passadiço me alertou, eu consegui guinar imediatamente e nada aconteceu felizmente. No caso de uma situação dessas, que só se percebe visualmente, quem seria responsável em caso de acidente? O criador do software do navio autônomo? As pessoas que autorizaram esse tipo de operação?
São questões que ainda vamos discutir por muitos anos e é importante estarmos inseridos em nível mundial. Quando Steve Jobs quis fazer um celular sem teclas, muita gente riu dele. Logo, não dá para dizer que navios autônomos não vão acontecer. Dentro do contexto atual, porém, é muito difícil. Por enquanto, é muito mais uma jogada de marketing do que uma realidade para os próximos anos.
Ricardo Falcão é presidente da Praticagem do Brasil e vice-presidente da Associação Internacional de Práticos Marítimos (IMPA)