A partir de 31 de dezembro de 2024, os países da União Europeia passarão a exigir uma diligência na qual estejam reunidos documentos que comprovem que os lotes de soja, carne, cacau, café, madeira dentre outros produtos do agronegócio brasileiro não têm origem em áreas de desmatamento ilegal ou posterior a dezembro de 2020 e, também, que foram produzidos respeitando a legislação aplicável, ou seja, os direito de uso do solo (fundiário), a proteção ambiental, a conservação de florestas e biodiversidade, os direitos trabalhistas, os direitos humanos, os direitos de terceiros, as normas tributárias, aduaneiras, comerciais e as normas anticorrupção.
Em outras palavras, os exportadores brasileiros deverão apresentar, junto com a fatura de cada lote de produtos, certidões negativas, mapas, anotações de responsabilidade técnica, pareceres jurídicos e outros documentos a fim de comprovar que que estão em dia com todas essas obrigações. Por sua vez, o governo brasileiro, por meio o Ministério da Agricultura e Pecuária – MAPA, da EMBRAPA e do SERPRO, está preparando a plataforma Agro Brasil + Sustentável na qual será possível encontrar muitas dessas informações e que promete facilitar o serviço de organização das informações e documentos exigíveis. Ou seja, do ponto de vista estritamente legal e técnico ambiental, os exportadores brasileiros parecem já ser capazes de organizar as informações e documentos necessários para cumprir o regulamento europeu e superar o desafio burocrático, uma vez que contam com os meios e os profissionais habilitados para isso.
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Entretanto, reorganizar a logística da soja rastreada, por exemplo, para que seja segregada da que não está rastreada, parece ser algo muto mais desafiador do que organizar os documentos e informações. Afinal, por ser um produto fungível, a formação dos lotes de produtos vem sendo feita usualmente reunindo-se a produção de diferentes agricultores, que são reunidos em pools nos armazéns e separados apenas por qualidade/classificação, isto é, sem levar em consideração a propriedade de origem. Ou melhor, nunca foi realizado um controle “da fazenda ao porto”, com a segregação da soja rastreada desde a origem. E mais, não há a priori caminhões, vagões e barcaças exclusivos para o seu transporte, ou ainda silos e armazéns disponíveis só para o produto rastreado e segregado, pois esse mercado sempre trabalhou com o regime de mass balance, em vista da fungibilidade da soja por exemplo.
A definição de produtos não associados ao desmatamento que consta no regulamento europeu diz expressa e literalmente “produzidos em terras que não foram objeto de desflorestação após 31 de dezembro de 2020”. Ou seja, em princípio, uma interpretação mais restritiva do texto não permitiria o uso da lógica do mass balance e, portanto, os exportadores não poderiam destinar uma soja à União Europeia que tenha sido misturada com outras cargas que não tenham sido rastreadas, mesmo que seja entregue somente o volume equivalente ao que tenha sido comprovadamente rastreado. Isto é, os exportadores têm que ser capazes de comprovar que a cada tombamento do produto rastreado ao longo da cadeira logística, isto é, em cada oportunidade em que o produto trocou de modal de transporte ou foi armazenado temporariamente, ele não foi misturado com outra carga não rastreada. Mas, por outro lado, distintas cargas rastreadas, em princípio, não haveria nenhuma vedação a priori no regulamento europeu proibindo que sejam misturadas entre si.
Portanto, assim como serão necessários laudos de engenheiros agrônomos, florestais, ambientais e/ou biólogos atestando que as imagens georreferenciadas das áreas de origem do produto comprovam que não foram desmatadas ilegalmente ou após 31 de dezembro de 2020, nos documentos da diligência devida devem constar também laudos de engenheiros de produção, de alimentos, navais, ferroviários ou de transportes, devidamente acompanhados de anotações de responsabilidade técnica, de que esses produtos não foram misturados em nenhuma etapa da cadeia logística, seja de transporte, seja de armazenamento.
Evidentemente, essas precauções todas que servem para manter a segregação dos lotes e permitir a mistura somente de produtos devidamente rastreados acarretarão maiores custos logísticos, dado o déficit de cerca de 20% na capacidade estática de armazenagem indicado pela Conab, mas também é certo que agregarão valor aos produtos rastreados, que poderão receber inclusive um prêmio em relação ao preço praticado para os produtos não rastreados.
Enfim, diante das dificuldades mencionadas acima, é essencial que os exportadores sejam capazes de organizar o cronograma da colheita e da armazenagem de modo que os lotes de produtos rastreados sejam formados e transportados segundo as janelas de atracação dos navios nos portos, encurtando a cadeia logística. Além disso, é absolutamente imprescindível que as autoridades portuárias, fiscais, aduaneiras, regulatórias e marítimas também estejam imbuídas de boa vontade e não criem empecilhos ao cumprimento da norma europeia. Afinal, é necessário que tudo funcione da forma mais harmônica possível para que a segregação permaneça íntegra, até o embarque da carga no navio.
A safra de soja 2024/2025 será a primeira em que todo esse arranjo será testado. Por isso, é absolutamente necessário que ao longo de segundo semestre de 2024 seja realizado um planejamento criterioso e a nova sistemática seja simulada ou até mesmo testada para se verificar quais os ajustes necessários. Mas para isso é necessário que todos os envolvidos neste desafio construam desde logo um diálogo franco que envolva agricultores, cooperativas, traders, transportadores, operadores portuários, agentes de carga, armadores e autoridades.
Maíra Paes Carvalho Vasconcelos é diretora da Mega Logística Transporte por Navegação S/A
Rafael Ferreira Filippin é sócio da NFC Advogados