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A natureza jurídica da cobrança de sobreestadia (demurrage) de contêineres

A troca e o transporte de mercadorias pelos mares são considerados como umas das manifestações mais antigas da sociedade.

Por conta da dinamização do mercado de transporte marítimo e do significativo valor agregado capitalizado com a movimentação de mercadorias acondicionadas em contêineres, os armadores de navios (transportadores) de carga passaram a se dedicar a um rígido controle de disponibilização e devolução desse ferramental logístico, tendo sido a cobrança de demurrage de contêineres (sobreestadias) uma medida de responsabilização cada vez mais constante nas relações de transportes.


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A escassez de contêineres em determinados portos, bem como o alto custo de reposição desses cofres de carga, alavancaram há tempos a necessidade de se cobrarem altos valores de demurrage (que ocorre na importação, sendo que na exportação o termo utilizado é detention) como forma de reposição de perdas econômicas e de estabelecimento de uma disciplina mercadológica adequada às necessidades do comércio; motivo pelo qual a demurrage, ou sobreestadia de contêineres, integralizou as operações de transporte de mercadorias em todo o mundo a partir do século XX.

O termo demurrage é utilizado para incluir todos os institutos conhecidos do sistema common law, a fim de descrever esse conceito de cobrança, sendo eles overliggetidsersattning, Uberliegegeld, overliggeld, surestaries, controstallie e demoras.1

Trata-se de um instituto de Direito Privado, de natureza contratual (eminentemente obrigacional, de modo que não se olvida da aplicação do princípio do pacta sund servanda), e próprio do direito marítimo.

Originalmente, o termo demurrage era aplicável aos contratos de fretamento por viagem,2 quando se estabelecia para cada uma das viagens, para o ciclo de viagens contratadas, um período de laytime,3 a fim de carregar e descarregar a carga, cobrindo-se a perda sofrida pelo fretador durante esse tempo.

O racional da cobrança da sobreestadia era remunerar ou indenizar o proprietário do navio pelo tempo em que sua embarcação estava afastada de sua atividade-fim, qual seja, a realização do ato de transportar de per si. Assim, o pensamento deve ser o mesmo quando se trata de sobreestadia de contêiner, sobretudo se considerado que o contêiner não se confunde com a mercadoria transportada; não constitui embalagem da mercadoria, sendo parte ou acessório do veículo transportador.

Pierre-Jean Bordahandy ensina-nos que a expressão sobreestadia de contêiner “pretende referir-se ao período durante o qual um contêiner começa a acumular custos adicionais para o remetente ou o destinatário, porque foi mantido à sua disposição em período maior do que o período acordado de dias livres”.4

Em outras palavras, sempre que o consignatário (figura que pode ser estendida a outros personagens, e por isso denominada muitas vezes nos contratos de transporte simplesmente como “negociante”) não devolver o equipamento, respeitando a estadia livre ou free time que é concedido pelo transportador, incorrerá em sobreestadia de contêiner.

Na prática, ao receber uma carga devidamente acondicionada em contêiner, após previamente avisado da chegada do navio, o consignatário possui uma quantidade determinada e previamente acordada de dias para usar o equipamento, período que engloba, inclusive, a liberação junto à Aduana (e eventualmente outras autoridades envolvidas, como Anvisa ou Mapa), e demais providências, devendo, ao final, proceder a devolução do ferramental logístico devidamente livre e desembaraçado ao seu proprietário ou representante; sendo que a sua não devolução no prazo e nas condições estabelecidas acarreta a cobrança da parcela de sobreestadia correspondente ao tempo excedente.

Obviamente imprevistos podem acontecer nesse trâmite — até porque essa cadeia engloba um número grande de interlocutores — e o atraso na devolução ocorre por conta de diversos motivos.

Por isso, vale registrar que uma logística de cargas eficiente pressupõe que os meios de transporte (tanto os navios quanto os contêineres) sejam otimizados à medida que aumenta seu tempo destinado à atividade de transportar (levar a carga de um destino a outro) e que diminui seu tempo de carregamento/descarregamento. Uma logística inteligente e integrada é igualmente relevante para facilitar e agilizar o uso e devolução dos cofres ao transportador marítimo para serem usados em outras demandas.

É ponto pacífico que a possibilidade de cobrança da sobreestadia de contêiner está prevista no contrato de transporte, que é representado pelo conhecimento de embarque ou Bill Of Lading, de tal modo que todas as partes intervenientes nessa relação obrigacional estão habituadas a essa realidade.

No entanto, não se olvida a existência de duas correntes dominantes que discorrem sobre a natureza jurídica da sobreestadia de contêiner.

Uma corrente que entende a cobrança como de natureza indenizatória e outra que se refere à sobreestadia como sendo cláusula penal.

Essa diferenciação parece ganhar relevo vez que, dentre um dos principais argumentos, os defensores da natureza jurídica como cláusula penal ponderam pela limitação do seu valor ao da obrigação principal, por lhe ser acessória, ao passo que a indenização, em princípio, não haveria qualquer teto, na medida em que deve corresponder à extensão do dano, ainda que pré-fixado.

Seja como for, a discussão é acalorada.

Como indenização, segundo os preceitos do Código Civil Brasileiro, emergem três requisitos legais obrigatoriamente, quais sejam: a culpa (numa de suas modalidades quando subjetiva, ou seja, negligência, imperícia ou imprudência), nexo de causalidade e dano.

A culpa é fundada no descumprimento da cláusula contratual que prevê a incidência da sobreestadia diante da devolução intempestiva do contêiner, interligada ao nexo causal e aos prejuízos, os quais são pre-fixados contratualmente diante dos prejuízos sofridos com a perda de novos fretes e oneração da logística para suprir as necessidades dos usuários que demandam contêineres, situação essa que, aliás, se acentuou bastante de forma global em tempos de pandemia. A propósito, enfatiza-se que os prejuízos são previamente calculados a uma cadeia logística de movimentação de cargas que, por ser dinâmica, célere e de caráter transnacional, sofre impactos importantes em face da mora na devolução dos contêineres.

A crítica reside na questão atinente à pre-fixação dos prejuízos contratualmente e nos altos valores cobrados, a despeito de essas quantias serem progressivas de acordo com o tempo correspondente em que o usuário retém a unidade além do permitido. As cobranças se dão por períodos, de forma sucessiva, e o valor de cada período não alcança o valor do frete ou do próprio contêiner, que são seguramente mais elevados.

Por sua vez, ao dispor sobre cláusula penal, o sistema jurídico brasileiro preceitua que se trata de montante preestabelecido contratualmente, cujo objetivo é reparar o possível dano sofrido por qualquer das partes signatárias da avença em caso de inadimplemento da obrigação. Para ser devida a obrigação imposta como cláusula penal, exige-se do credor apenas a comprovação da mora do devedor (independente de culpa), cujo montante a ser pago deverá estar limitado ao valor da obrigação principal e fixado no bojo do próprio contrato firmado entre as partes.

A parcela doutrinária que sustenta a caracterização como cláusula penal assevera que a liquitaded damage, ou indenização prefixada do sistema common law, quando analisada sob a égide da civil law, aperfeiçoa-se com o que se reconhece como as cláusulas penais do direito brasileiro.

Ainda para os defensores dessa corrente, a demurrage tem natureza de cláusula penal contratual, independente de culpa, não limitada ao valor da obrigação contratual, e prescinde da demonstração do dano efetivo sofrido em decorrência do ato do devedor, uma vez que as disposições pactuadas entre as partes, ou os costumes impostos pela lex mercatória, já asseveram a obrigação de indenizar em caso de inadimplemento da obrigação.

Sob essa perspectiva, os usuários invocam a necessidade de modicidade dos valores como forma de garantir um serviço adequado e cobram ainterferência do Estado diante da ausência de critérios objetivos para fixação da demurrage.

Essa linha doutrinária sustenta que o valor da cláusula penal não pode ser maior do que o da obrigação principal, que seria, segundo uns, o frete, e segundo outros, o valor do próprio contêiner, invocando o disposto no artigo 412 do Código Civil.

Esse argumento é contraposto pelos armadores por entenderem que a questão não é tão simples e envolve os prejuízos de toda a cadeia logística global, além do fato de que o valor somente atinge somas expressivas, muitas vezes, por desídia do usuário em providenciar a devolução do equipamento no prazo que lhe é dado.

Isso significa, em outras palavras, que não se poderia levar em conta apenas o valor da sobreestadia a pagar, sem considerar o total de dias em que houve o excesso na utilização da unidade.

No entanto, pouco — ou nada — se diz a respeito das causas que levam à demora no uso dos equipamentos.

Estratégia comercial ou motivos alheios à vontade do usuário são algumas das explicações recorrentes.

Situações de greve como forma de caracterizar a hipótese de caso fortuito e força maior para desconstituir o nexo de causalidade da obrigação de indenizar são também afastadas pelos Tribunais sob o fundamento de que movimentos paredistas devem ser esperados pelos usuários de tal forma que não constitui fato imprevisível ou inesperado.

Diante desse impasse, os acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos criaram uma linha jurisprudencial tendente a conferir à demurrage de contêineres a natureza indenizatória de origem obrigacional entre os sujeitos de direito privado, desvinculada das despesas de armazenagem, cujo montante a ser pago pelo devedor não está limitado ao valor da obrigação principal e independe de demonstração de culpa do devedor.

Essa natureza jurídica ímpar de caracterização do instituto da demurrage já foi assentada em diversas oportunidades na jurisprudência.

A propósito, confira-se:

“A demurrage tem natureza jurídica de indenização, e não de cláusula penal, o que afasta a incidência do artigo 412 do Código Civil. Se o valor das demurrages atingir patamar excessivo apenas em função da desídia da parte obrigada a restituir os containers, deve ser privilegiado o princípio pacta sunt servanda, sob pena de o Poder Judiciário premiar a conduta faltosa da parte devedora.” (STJ, REsp n.º 1.286.209/SP, rel. Min. João Otávio de Noronha)

“De acordo com a jurisprudência desta Corte Superior, as demurrages têm natureza jurídica de indenização, e não de cláusula penal, sendo necessária, apenas, a comprovação da mora na devolução dos containers.” (STJ, AgInt no AgInt no AREsp 868193/SP, Rel. Min. Marco Buzzi).

No voto condutor do acórdão proferido no julgamento do REsp nº 1.355.173/SP, o Ministro Luis Felipe Salomão, ao discorrer a respeito da natureza jurídica da sobreestadia de contêineres, pontuou: "(...) Em suma, sobreestadia ou demurrage é termo técnico deveras utilizado em direito marítimo e que significa a obrigação de pagamento de certo montante, em decorrência do prejuízo causado ao armador pela ultrapassagem do prazo preestabelecido no contrato para devolução do navio ou do equipamento utilizado para acomodar a carga. Assim, o atraso na entrega do contêiner importa o descumprimento de cláusula do contrato de afretamento, rendendo ensejo ao pagamento do respectivo ressarcimento, haja vista que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico ao impedir que o transportador desenvolva sua atividade principal, que é vender frete. De fato, este Tribunal Superior posicionou-se no sentido de ser a demurrage uma indenização, consoante se dessume do seguinte excerto do voto condutor do REsp 176.903/PR.”

A respeito da alegada limitação, firmou-se entendimento de que “A demurrage consiste em indenização convencionada pelas partes, razão pela qual ressoa indevida a aplicação do art. 412, do CC/02, para limitá-la ao valor da obrigação principal.” (STJ, REsp n.º 1.554.480/SP, rel. Min. Nancy Andrighi)

Fixada na jurisprudência vigente, é de todo prudente garantir a segurança jurídica daqueles que são alcançados pela aplicação da natureza jurídica da sobreestadia, a fim de que os envolvidos possam ter tranquilidade e transparência no exercício de suas atividades-fim, sobretudo quando o momento atual da economia global exige um esforço hercúleo de todos os players para serem atuantes e, mais, competitivos.

A apuração dos gargalos na cadeia logística também é relevante no contexto apresentado, até mesmo como forma de aperfeiçoamento dos pontos eventualmente sensíveis.

Assim, se indenização ou cláusula penal, certo é que, se o fator desencadeante da sobreestadia é a demora no uso do equipamento (ponto em que todos parecem concordar), torna-se pertinente, no exercício das ideias de cunho científico, perquirir as suas causas como forma de se solucionar efetivamente o impasse, afinal, o interesse é comum, tanto da parte do usuário, como do transportador, qual seja, movimentar a carga e fazer girar a economia.

1 TIBERG, Hugo. Law of demurrage. 5. ed. Londres: Sweet & Maxwell, 2013, p. 511.
2 Nos termos do inciso III do art. 2o da Lei no 9.432/2019, “afretamento por viagem é o contrato em virtude do qual o afretador recebe a embarcação armada e tripulada, à disposição do afretador para efetuar transporte em uma ou mais viagens […]”.
3 Laytime é o período de tempo em que o navio ficará disponível no cais ao afretador para as operações de carregamento e descarregamento de carga, sem que tenha de pagar nenhum adicional por isso (FOÉS, Gabrielle Thamis Novak. Demurrage de contêiner no direito inglês e brasileiro: crítica à reforma do Código Comercial. São Paulo: Aduaneiras, 2017,p. 70).
4 BORDAHANDY, 2015, apud CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino. Contratos marítimos e portuários: responsabilidade civil. São Paulo: Aduaneiras, 2015, p. 179-180.

AutorasFlávia Morais Lopes Takafashi é diretora do Departamento de Gestão de Contratos da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários e Luciana Vaz Pacheco de Castro é advogada sócia da Advocacia Pacheco de Castro

 

 

 

 

 

 

 

 






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