O acordo que foi fechado neste domingo (15) estava em andamento havia quase uma década e cobre quase um terço da economia global, com a China na liderança.
Depois de uma década em construção, o maior acordo comercial do mundo aconteceu. Líderes asiáticos assinaram no domingo (15), em Hanói, o mega-tratado que inclui os dez membros da Associação de Nações do Sudeste Asiático, além de China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.
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O acordo, Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP, na sigla em inglês), será maior que a União Europeia e o Acordo Estados Unidos-México-Canadá. Os membros somam quase um terço da população mundial e 29% do Produto Interno Bruto (PIB) do planeta.
A Índia também fez parte das negociações, mas desistiu em 2019 por temer que a redução das tarifas prejudicasse seus produtores.
O acordo
O RCEP eliminará tarifas de importação pelos próximos 20 anos. O acordo também inclui dispositivos sobre propriedade intelectual, telecomunicações, serviços financeiros, comércio eletrônico e serviços profissionais.
Muitos dos países-membros já têm acordos de livre-comércio entre si, mas com limitações que podem ser superadas com o atual acordo.
"Os acordos de livre-comércio existentes costumam ser muito complexos em comparação com o RCEP", disse Deborah Elms, da organização Asian Trade Centre, à BBC em Cingapura.
Até agora, as empresas que dependem de cadeias de suprimentos globais podiam ser afetadas por tarifas, apesar de um acordo de livre-comércio, porque seus produtos tinham componentes fabricados em outro lugar. Um produto fabricado na Indonésia que contém peças fabricadas na Austrália, por exemplo, pode estar sujeito a tarifas.
No âmbito do RCEP, entretanto, os componentes de qualquer país membro serão tratados da mesma forma, o que poderia dar às empresas nos países do RCEP um incentivo para fazer parceria com fornecedores da nova aliança regional.
Qual é a sua importância geopolítica?
A ideia do RCEP nasceu em 2012 e foi vista como uma forma de a China, maior importadora e exportadora da região, se opor à influência que os Estados Unidos vinham exercendo ali durante o governo de Barack Obama.
Obama havia promovido a Parceria Transpacífica (TPP, na sigla em inglês), da qual faziam parte México, Chile e Peru, mas não a China.
O interesse pelo RCEP cresceu quando Trump retirou os EUA da Parceria Transpacífico - o país era o arquiteto do acordo e cuja economia correspondia a dois terços do total do bloco.
Na verdade, a guerra comercial entre Estados Unidos e China e a política nacionalista de Trump ("America first") acabaram com a ideia de Obama de olhar mais para a Ásia e serviram para dar força ao RCEP, que é visto como uma oportunidade de Pequim para definir a agenda comercial regional na ausência de Washington.
Como principal fonte de importações e principal destino das exportações da maioria dos membros do RCEP, a China parece ser o principal beneficiário e está bem posicionada para influenciar as regras comerciais e expandir sua influência na Ásia-Pacífico, algo que Obama queria evitar.
A Presidência de Biden mudará alguma coisa?
O comércio internacional esteve muito menos presente na agenda nesta campanha presidencial, e Biden disse relativamente pouco sobre se sua política comercial mudará significativamente ou se vai reconsiderar o retorno à Parceria Transpacífico.
Biden defende retomar uma política de multilateralismo, como durante o governo Obama, mas é prematuro falar em acordos comerciais, dados os enormes desafios que o democrata enfrentará internamente. Além disso, eventuais medidas nesse sentido correm o risco de serem vistas como prejudiciais aos sindicatos que o ajudaram a vencer nos Estados do chamado cinturão da ferrugem (região tradicionalmente industrial dos EUA).
É esperado que suas prioridades comerciais se concentrem em trabalhar com os aliados para pressionar a China e forçar mudanças na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Voltar ao que era à Parceria Transpacífico pode não acontecer no curto prazo.
Os sindicatos e os progressistas que apoiaram a eleição de Biden têm sido céticos em relação aos acordos de livre-comércio, e representantes desses grupos estão presentes em sua equipe de transição. Eles podem defender certas medidas de proteção a indústrias vulneráveis, como aço e alumínio.
Se Biden decidir se reconectar com a Ásia-Pacífico, isso pode funcionar como um contrapeso em relação à China.
Como afeta a América Latina?
O comércio bilateral entre a Ásia e a América Latina tem crescido continuamente nas últimas décadas, mas a integração entre as duas regiões tem muito espaço para avanços e pode sofrer o impacto do novo acordo, afirmam analistas.
"No curto prazo, o RCEP pode causar algum desvio comercial, limitar o crescimento do comércio entre a América Latina e a Ásia", diz Jack Caporal, especialista em comércio do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), com sede em Washington.
"No entanto, as regras comuns tornarão mais fácil para as empresas latino-americanas com presença na Ásia fazerem negócios lá", agrega Caporal. "Uma questão importante para os países latino-americanos é se eles buscarão uma integração com a Ásia individualmente ou em conjunto, como por meio da Parceria Transpacífico ou do Mercosul."
"Desde que o comércio entre a América Latina e a China explodiu, nos anos 2000, liderado quase exclusivamente pelo rápido crescimento da China e sua necessidade de matérias-primas, os países da região buscaram uma maior integração com a Ásia em geral, não apenas com a China, mas em particular com Japão, Coreia do Sul e Índia", diz à BBC News Mundo Cynthia Arnson, especialista do Wilson Center nas relações entre as duas regiões.
Arnson afirma que esse era o espírito da Parceria Transpacífico, agora dizimada na ausência dos Estados Unidos.
"A menos que o governo Biden retorne à Parceria Transpacífico, os países latino-americanos serão atraídos por uma maior participação de mercado na Ásia, que agora está representada pelo RCEP", acrescenta.
Nicolás Albertoni, professor da Universidade Católica do Uruguai e pesquisador associado do Laboratório de Política e Segurança Internacional da Universidade do Sul da Califórnia, acredita que há uma "desvantagem" para os países que não fazem parte desse tipo de mega-acordos.
"É fundamental que os países da América Latina (principalmente do Cone Sul) que não fazem parte batam à porta e peçam para fazer parte desses acordos", opina à BBC News Mundo.
E os efeitos para o Brasil?
O novo acordo deve afetar pouco a exportação de commodities brasileiras para a região, segundo especialistas em relações internacionais e comércio exterior ouvidos pela BBC News Brasil.
O professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Bruno Hendler destaca que o acordo "faz parte de uma disputa maior, entre EUA e China, por processos de integração regional que vão muito além da redução de tarifas comerciais".
Especialista em relações da China com o Sudeste Asiático e com a América Latina, Hendler pondera que os efeitos desse tipo de acordo levam anos para serem sentidos, principalmente porque muitos países tendem a usar salvaguardas para proteger setores econômicos mais frágeis.
"O reflexo mais imediato desse acordo é a tendência de elevação de competitividade dos países asiáticos pela integração nas cadeias globais de valor, que é um processo que vem acontecendo há décadas", diz Hendler.
Para o Brasil, ele diz, o impacto não deve ser tão significativo.
"O grande mercado asiático, que é o chinês, já tem acordo de livre-comércio com países que são concorrentes do agronegócio brasileiro. O novo acordo tende a oficializar uma série de acordos que já existiam - que alguns autores chamam de prato de espaguete, em referência a essas conexões. Vejo esse acordo como um 'upgrade' de uma série de acordos bilaterais e multilaterais que já existiam entre esses países. Então, no curto prazo, acho que o agronegócio brasileiro não será tão impactado porque já tem sido impactado há anos pelo acesso privilegiado que o Sudeste Asiático tem ao mercado chinês."
O presidente-executivo da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, espera um "impacto menor" para a exportação de commodities brasileiras.
"Tínhamos preocupação com o acordo anterior (TPP ou Parceria Transpacífico), em que os EUA, nosso grande concorrente na exportação de commodities, participavam e teriam muita vantagem. No acordo atual, o impacto para o Brasil em termos de commodities muda pouco, e em relação a produtos manufaturados já temos participação muito pequena, que continuará pequena enquanto Brasil não fizer reformas estruturais internas", diz Castro.
Especialista em geografia das relações internacionais, Gustavo Glodes Blum também diz que as correntes de comércio do Brasil com a região Ásia-Pacífico, baseada nas commodities, não serão alteradas. Ele destaca, no entanto, que o Brasil pode sentir efeitos de uma possível perda de mercado dos EUA por lá.
"O efeito mais relevante para nós talvez seja um aprofundamento da disputa por mercado, com os EUA aumentando esforços de penetrar no nosso mercado. A China cria, na prática, um mercado comum na região e isso vai prejudicar circulação de produtos americanos ali dentro", diz Blum.
O ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil Welber Barral, que classifica o acordo como uma vitória da China, avalia que "pode haver algumas concessões tarifárias para países da região, que não vão abranger o Mercosul, e isso faz o Brasil perder vantagens tarifárias na região".
Barral destaca que o Mercosul terá que procurar avançar nos acordos com a Ásia. E também aponta que empresas brasileiras que eventualmente decidam se instalar em algum dos países abrangidos pelo acordo podem se beneficiar de uma plataforma de expansão na Ásia.
'Pouco ambicioso'
Embora o RCEP tenha sido uma iniciativa dos dez países da Associação de Nações do Sudeste Asiático, ele é visto por muitos como uma alternativa apoiada pela China à Parceria Transpacífico, um acordo que exclui Pequim, mas inclui muitos países asiáticos.
Doze nações, incluindo Chile, México e Peru, assinaram a Parceria Transpacífico em 2016, antes de Trump retirar seu país do acordo em 2017.
Sem os Estados Unidos, os demais países assinaram o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica (CPTPP, na sigla em inglês). Embora inclua menos países, o CPTPP reduz as tarifas ainda mais do que o RCEP e inclui disposições sobre emprego e meio ambiente.
O ex-primeiro-ministro australiano Malcolm Turnbull criticou o novo acordo ao dizer que é desatualizado.
"Haverá alarde sobre a assinatura e entrada em vigor do RCEP, mas é um acordo comercial pouco ambicioso, não devemos nos enganar", disse Turnbull, que assinou a Parceria Transpacífico em nome de seu país.
Ativistas temem a falta de medidas para proteger os trabalhadores e o meio ambiente e que isso prejudique os agricultores e pequenos negócios em um momento em que eles já estão sofrendo devido à pandemia.
Diferenças à parte
Do lado positivo, o RCEP reúne países que costumam ter relações espinhosas, como China e Japão. Além disso, tanto Austrália quanto China estão aderindo ao acordo, apesar de relatos de que a China pode boicotar algumas importações australianas por causa de diferenças políticas.
"Você pode cooperar com alguém ou simplesmente odiá-lo, assim como as pessoas. O RCEP fez um trabalho impressionante ao se separar de outras disputas", diz Elms.
Fonte: G1