Ao longo de minha vida profissional pude estar presente em diversos momentos em que o capital privado e o setor público se aproximaram. Ainda mais, estive dos dois lados. Trabalhava em operadora pública, nos anos 90, quando as ferrovias de carga foram concedidas à iniciativa privada. Posteriormente, já no setor privado, atuei em concessionárias de rodovia e de saneamento. Nos últimos anos, surgiram as PPPs -Parcerias Público Privadas, que defino, simplificadamente, como concessões que têm que ter receita complementada pelo poder concedente, para que sejam viáveis economicamente.
Após muitos anos e neste momento, lamento demonstrar no presente texto menos entusiasmo pelas PPPs do que costumo ouvir ou ler nos diversos seminários e artigos sobre o tema, inclusive em recente artigo publicado, neste mesmo prestigioso espaço do Valor, por renomado especialista de banco nacional.
Passados vários anos concluo que as PPPs unem o pior de dois mundos: o mundo dos contratos públicos e o dos contratos privados. Explico: nos contratos com o setor público, obtidos com base na Lei 8666/93, o capital é público e a legislação é pública, ou seja, aplica-se o Direito Administrativo. O empresário somente aplicará recursos em capital de giro e eventual aquisição de equipamento. No caso dos contratos privados, o capital é privado e o direito é privado. Nas PPPs: o capital é privado e o direito, público ou administrativo.
A inapetência para decidir não afeta apenas as PPPs, mas está generalizada na administração pública
Sabemos bem que a legislação pública baseia-se em premissas como impessoalidade, transparência, direito ao contraditório e exigência de fundamentação para todas as decisões. Ainda mais: decisões que estão submetidas a diversas instâncias de controle. Como resultado, penso que ninguém discordará: decisões mais morosas. Então vejamos: nas PPPs, o capital é preponderantemente privado e as decisões públicas. O resultado, via de regra, são decisões que comprometem o capital privado no tempo. Vamos ser mais diretos: enquanto o poder público decide, o empresário paga juros ou estende o comprometimento de seu capital.
Nas mesmas ocasiões em que assisto a palestras ou leio sobre PPPs, sempre está presente o conceito de "Project Finance". Mais uma vez simplificadamente, trata-se de modelagem financeira pela qual o capital de terceiros investido é garantido por fluxo de recebíveis do empreendimento. Minha pergunta: alguém conhece um projeto de PPP financiado exclusivamente por "Project Finance"?
Para mim, trata-se de "cabeça de bacalhau": dizem que existe, mas eu nunca vi. A regra exige finanças, seguros, avais, alcançando até as pessoas físicas dos empreendedores. A situação que o país vive, de enxugamento monetário, crescimento da inadimplência pública e privada, e incertezas sobre o futuro de grandes empreiteiras torna os bancos ainda mais seletivos. As perdas sofridas no caso das empresas do Grupo X deixaram lembranças amargas nos comitês de crédito. Não se engane o empresário: numa PPP, seu patrimônio como capital ou como garantidor estará comprometido e submetido ao tempo de decisão do setor público.
O quadro pessimista que coloco aqui está muito agravado pelo momento atual. Os recentes escândalos envolvendo empresas públicas não só afastam fortemente os bancos, como afetam a vontade de decidir dos administradores públicos sérios. Que gerente público, no meio de uma vida profissional séria, estaria disposto a expor-se, sua família e bens que tenha conseguido amealhar com trabalho, para decidir questão que envolva interesse privado neste momento? Ainda mais, sabendo que suas decisões poderão ser avaliadas no futuro em contexto diferente daquele em que foram tomadas? Com receio de que a decisão de hoje venha a mostrar-se real ou aparentemente equivocada amanhã, prefere omitir-se. Afinal, no setor público, nenhum gerente é avaliado pelo que não fez.
O fenômeno de inapetência para decidir não afeta apenas as PPPs, mas está generalizado na administração pública direta e indireta, pelas razões expostas.
Ainda mais, a falta de vontade de decidir, às vezes, é amplificada pelo preconceito ideológico, corporativismo, desinformação sobre a legislação sobre PPPs ou desconhecimento do funcionamento do mercado financeiro. Todos deveriam considerar que PPPs e iniciativas exclusivamente públicas, pela administração direta ou por meio de estatais, não são excludentes, mas complementares. Também deveriam saber que contraprestação não é ganho, mas retorno no tempo de investimento realizado e pagamento de serviços. Todos deveriam saber que dinheiro tem valor no tempo e que dar garantias consome limite de crédito. O empresário que vincula seu patrimônio a uma PPP, ao invés de aplicá-lo como rentista e se mudar para o exterior, merece respeito, reconhecimento pela decisão oportuna.
Não resta dúvida que o Brasil precisa investir com urgência em infraestrutura, para que seu desenvolvimento não seja truncado pela falta de energia, transportes e segurança; não resta dúvida que não temos infraestrutura que dê base para o crescimento do PIB que almejamos; não resta dúvida que as PPPs permitiriam antecipar investimentos, complementar iniciativas de governo e trazer produtividade. Contudo, parece-me ilusão que isto aconteça sem que haja um amplo diálogo nacional sobre o tema.
Que se promovam encontros multilaterais com a presença de empresários, agências de regulação, órgãos de controle, dirigentes públicos, políticos e imprensa. Que muita informação seja veiculada, que muitos artigos e editoriais sejam publicados. Sem um concerto nacional, não creio (gostaria de estar errado) que as PPPs vão acontecer, ao menos, na dimensão necessária.
Fala-se no "espírito animal" dos empresários. O único animal que me vêm à mente neste momento, como metáfora dos interessados em PPPs, são os lemingues: aqueles "ratinhos" que, conforme o mito, se "suicidam", jogando-se dos penhascos no mar. No mar da indecisão.
Neste momento, o pior apagão não é o da energia ou da água, é o da decisão.
Fonte: Valor Econômico/Telmo Giolito Porto é professor-doutor da Escola Politécnica da USP.
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