Em tempos em que a sustentabilidade (econômica e ambiental) entra cada vez mais fundo na pauta corporativa, os veleiros estão de volta ao transporte de cargas. O que para muitos parece um retrocesso a séculos atrás, para outros a forma de garantir um futuro em uma economia mais limpa. Na América do Norte e Europa, alguns torrefadores de café, empresas de azeite e vinícolas voltam às práticas de transporte do passado com transporte com barcos a vela.
É o caso, por exemplo, do Café William, que está se valendo de um navio de madeira de 1909 para transportar as cargas de cafés especiais da Colômbia para Nova Jersey (EUA). Segundo reportagem da revista Insider, depois de uma reforma, o navio voltou a fazer entregas e faz parte da estratégia da empresa de ser a primeira torrefadora a vender café “carbono neutro”.
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O movimento ganhou força com a elevação do preço do petróleo por conta da invasão da Ucrânia pela Rússia e também pelo impacto, pela pandemia, na cadeia de suprimentos. Isso permitiu que os veleiros evitassem atrasos em portos, oferecendo um transporte mais barato e eficiente. Por outro lado, os clientes cada vez mais pedem produtos mais sustentáveis, mesmo que isso custe mais.
Estima-se que o transporte marítimo represente entre 2% e 3% das emissões globais de CO2 – um número próximo às emissões de gases de efeito estufa do setor de aviação.
Veleiros seriam uma alternativa
Por não usarem combustíveis fósseis, os veleiros são certamente uma alternativa, ainda que não apareçam como uma opção comercialmente viável e de escala, ainda. Mesmo assim, dentro da pauta de descarbonização do transporte, companhias já consideram o transporte pelo mar e rios como uma alternativa ao modal rodoviário, um dos mais poluentes.
Redução do custo de transporte, menos emissão de carbono, mais segurança, novo corredor logístico. Esses são alguns dos benefícios que o Programa de Estímulo ao Transporte por Cabotagem, conhecido como BR do Mar, em vigor desde o início do ano, trouxe para algumas empresas que sempre tiveram o transporte terrestre (majoritariamente o rodoviário) como principal meio de distribuição de seus produtos.
Na prática, o programa, que consta na Lei 14.301, promulgada em março de 2022, contribui para a sustentabilidade e o avanço da agenda ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança corporativa) à medida que encoraja a modalidade de transporte e movimentação de cargas entre portos de um mesmo país por rios e mares ao invés do modal rodoviário.
- Com a cabotagem chegamos a um mercado onde não atuávamos - comemora Alberto Rodrigues, diretor de logística da Yara, empresa norueguesa líder mundial em nutrição de plantas, que tem no Brasil cinco unidades de produção de fertilizantes.
Em agosto, a Yara realizou o primeiro envio de fertilizantes a granel via cabotagem, saindo do porto de Rio Grande (RS) para atracar no porto de Itaqui (MA) onze dias depois, atendendo a agricultores do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
- Criamos um novo corredor logístico - diz o executivo, que destaca os desafios da operação para levar 15 toneladas do produto, o que não era possível por outro modal.
- Foi necessário um planejamento entre todas as áreas, desde uma equipe comercial para garantir que havia essa demanda até o dimensionamento de custos. As plantas, nos dois terminais, tiveram que ser readequadas para o volume transportado.
Dessa forma, a empresa realizou um transporte mais rápido e sustentável. Calcula-se que, se viável pelo meio terrestre, seriam necessários 405 caminhões para levar o que um único navio carregou. Não é possível, segundo o executivo, fazer um cálculo exato de ganho em descarbonização, já que a operação é inédita:
- Mas é mais sustentável, com certeza.
Com o sucesso da empreitada, está prevista uma nova operação em 2023.
O gargalo destravado com a Br do Mar permite que empresas possam agora contratar navios, nacionais ou estrangeiros, em uma relação mais flexível entre o armador e o embarcador. A medida também possibilitou a redução da taxa AFRMM (Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Marcante) cobrada sobre o valor do frete, passando de 25% para 8%.
-Isso vai garantir a expansão da cabotagem e uma diminuição do custo logístico - explica Marcelo Fernandes Bragança, VP Executivo de Operações, Logística e Sourcing da Vibra Energia, uma das principais distribuidoras de combustíveis do país (antiga BR Distribuidora).
Ele prevê uma redução de até R$ 10/m3 no valor das cabotagens e de até R$ 35/m3 no valor das importações (valores aproximados), considerando valores atuais de frete e uso de navios tipo MR (Medium Range), próprios para o transporte desse tipo de material.
Em 2019, a Vibra Energia começou a testar a cabotagem de biodiesel entre o Rio Grande do Sul e Pernambuco. Os resultados foram promissores e, no ano passado, sete navios transportaram 45.000m³.
- Tivemos uma economia de R$ 17 milhões, o que significa R$ 0,36 por litro do biodiesel - calcula Bragança. Para este ano estima-se um aumento em 20% no volume transportado pelo modal.
O cabotagem, nesse caso, faz todo o sentido porque a distribuição de usinas de biodiesel pelo país é desproporcional ao consumo de cada região do Brasil. As regiões Sul e Centro Oeste abrigam a maioria das usinas, enquanto no Nordeste as poucas usinas não são suficientes para atender o mercado local.
Saída pelo mar
Essa saída pelo mar só tem ganhos. Evitam-se, por terra, caminhões rodando em estradas com infraestrutura precária, falta de segurança e muita poluição. No marítimo, o volume transportado tem outra dimensão, a segurança é maior e a descarbonização se revela.
Aos números: a Vibra eliminou 900 viagens rodoviárias de longa distância entre o Centro-Oeste e o Nordeste, substituídas por viagens curtas no Sul e Nordeste para levar e buscar o combustível nos portos. Elas acarretavam um consumo total de 1.165 metros cúbicos (m³) de diesel, ocasionando em 2.716 toneladas de CO2 (tCO2), com uma intensidade de 31,17 gramas de CO2 por TKU (tonelada por quilômetro útil).
Na cabotagem, embora a distância seja maior, o consumo médio do combustível caiu para 287 m³, com a emissão de 897 tCO2 e intensidade de 6,64 gCO/TKU. Verificou-se, portanto, uma redução de 1.818 tCO.
O desafio da Vibra, de acordo com o executivo, “foi assegurar a integridade do produto em todo esse processo, pois o biodiesel é higroscópico (absorve água)”. Para isso, foi preciso encontrar fornecedores para este tipo de transporte e readequar espaços e processos para a estocagem.
Tanto para a Yara quanto para a Vibra, a cabotagem vem ao encontro das práticas menos poluentes, condizente com as metas de empresas e governos para diminuir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) e, assim, desacelerar o aquecimento global. Em paralelo, ajuda empresas a ganhar produtividade e diminuir custos logísticos.
Entendem que a BR do Mar ainda engatinha e que no futuro os ganhos serão muito maiores. “Temos uma caminhada e isso vai demandar amadurecimento”, resume Rodrigues. Além de que, investindo na cabotagem, essas empresas levam junto outros fornecedores na mesma onda de um mundo menos poluído.
Fonte: O Globo