No final da conferência de cúpula COP26 sobre o clima, realizada em novembro em Glasgow, os negociadores sentiram que algum progresso, ainda que frágil, havia sido obtido. Mais de 80% das emissões mundiais de poluentes estavam cobertas por promessas governamentais de atingir o chamado balanço zero –ou seja, o equilíbrio entre as emissões e a remoção de gases causadores do efeito estufa na atmosfera.
A conferência viu acordos cruciais sobre desflorestamento, emissões de metano e a produção de carvão. Pelo menos 23 países assumiram novos compromissos quanto a reduzir gradualmente o uso de carvão na geração de energia, até zerá-lo, e isso incluía países do Sudeste Asiático e da Europa.
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O acordo final entre os 197 países participantes continha uma cláusula de redução nos subsídios aos combustíveis fósseis, a despeito da discussão feroz que havia surgido sobre se o carvão deveria ser "minimizado" ou "eliminado". Mas a direção do percurso era clara, disse Alok Sharma, presidente da COP26. "Os países estão dando as costas ao carvão", ele afirmou. "O fim do carvão está à vista".
Passados quatro meses, o quadro da energia mundial mudou significativamente –e não na direção que Sharma e os demais negociadores da COP desejavam.
Longe de cair, o uso mundial do carvão disparou para níveis recorde nos primeiros meses do ano, gerando uma alta de emissões, e as instalações que geram energia limpa ficaram abaixo do nível necessário para atingir as metas climáticas.
E isso tudo antes que a Rússia invadisse a Ucrânia, precipitando uma crise mundial de energia que forçou países, especialmente na Europa, a buscar maneiras de se libertar rapidamente do gás natural e petróleo russos, e reconsiderar os cronogramas quanto às suas promessas de reduzir o uso de combustíveis fósseis.
O economista Dieter Helm, professor de política energética na Universidade de Oxford, diz que o abandono dos combustíveis fósseis jamais pareceu tão complicado. "A transição energética já estava enfrentando problemas – 80% da energia do planeta continua a vir de combustíveis fósseis", ele diz.
"Antecipo que, em curto prazo, os Estados Unidos elevarão sua produção de petróleo e gás natural, e o Mar do Norte pode receber novos investimentos", ele afirma. Além disso, o consumo de carvão pela União Europeia também pode crescer, acrescenta.
Os líderes europeus estão encorajando a União a acelerar a transição para a energia renovável em resposta à guerra. Em uma reunião para discutir a estratégia geral de energia da União Europeia esta semana, a expectativa é de que eles pressionem por uma resposta verde.
"Estamos determinados a limitar a capacidade de [Vladimir] Putin para financiar sua guerra atroz", tuitou Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, no final de semana. "A União Europeia precisa se livrar de sua dependência quanto aos combustíveis fósseis".
A energia limpa, diz Christian Lindner, ministro das Finanças da Alemanha, deve ser considerada como "a energia da liberdade". O país planeja reduzir sua dependência das importações de energia russa ao acelerar os programas de energia renovável e chegar a 100% de energia limpa até 2035 (ainda que o chanceler [primeiro-ministro] Olaf Scholz tenha aceitado que, em curto prazo, o país tem pouca escolha a não ser continuar comprando petróleo e gás natural da Rússia).
Mas alguns especialistas dizem que a Europa e outros países já tinham perdido outra oportunidade gerada por uma crise, no caso a pandemia da Covid-19. "Dizem que nunca devemos desperdiçar uma boa crise. Mas acho que uma já tinha sido desperdiçada, com a pandemia", diz Thijs Van de Graaf, professor associado de Política Internacional na Universidade de Ghent (Bélgica).
Um recente estudo publicado pela revista cientifica Nature constatou que os países do Grupo dos 20 (G20) gastaram US$ 14 trilhões em medidas de estimulo à economia em 2020 e 2021, mas que apenas 6% desse total foi alocado a áreas que resultariam em corte de emissões.
A crise atual ainda pode ser diferente, sugere Van de Graaf. "Muitas das estratégias para reduzir a dependência quanto à Rússia são semelhantes às medidas políticas que seriam desejáveis para reduzir emissões". Na Europa, ele aponta, a guerra está provocando uma disparada de investimentos na energia limpa. "Nos momentos em que temos esse tipo de crise, a transição [energética] pode receber um impulso adicional".
A questão é determinar se uma mudança com essa pode acontecer com rapidez suficiente para permitir que o mundo cumpra suas tênues metas climáticas –e se a instabilidade econômica causada pela guerra não provará ser um revés de longo prazo, em vez de um incentivo na direção da transição verde.
"O que aconteceu este ano foi a primeira crise de preços do balanço zero", diz Helm. "E a primeira indicação de o quanto a transição será custosa, e é necessária".
O RETORNO DO CARVÃO
Mesmo antes que guerra começasse, o carvão já estava desfrutando de uma recuperação, porque a recuperação econômica pós-pandemia levou a uma alta na demanda por energia.
Isso aconteceu até mesmo em países nos quais as metas ambientais eram ambiciosas. Nos Estados Unidos, a geração de energia a carvão foi maior em 2021, na presidência de Joe Biden, do que tinha sido em 2019 sob o então presidente Donald Trump, que se posicionou como aspirante a salvador da indústria do carvão no país. Na Europa, a geração de energia com o uso de carvão cresceu em 18% em 2021, a primeira alta em quase uma década.
A alta mundial na demanda resultou em lucros extraordinários para empresas como Glencore, Whitehaven Coal e Peabody Energy, esta última uma companhia até recentemente concordatária do Wyoming que agora planeja expandir sua produção, depois do trimestre mais lucrativo de sua história.
Jim Grech, presidente-executivo da Peabody, antecipa que este ano traga "um período de demanda elevada" por carvão, e alta continuada de preços.
A guerra na Ucrânia pode estimular ainda mais a demanda por carvão, pelo menos em curto prazo. Esse ponto foi admitido na semana passada pelo ministro alemão da Economia, Robert Habeck, que disse que a Europa pode se ver forçada a queimar mais carvão diante da agressão russa e da disparada nos preços do gás natural.
Os preços do gás natural atingiram o recorde de mais de 335 euros por megawatt/hora esta semana, e nessa cotação algumas usinas de energia economizam mais se queimarem carvão em lugar de gás natural, mesmo que o custo das emissões de carbono envolvidas na queima de carvão seja incluído no cálculo.
As preocupações de segurança energética também estão contribuindo, e alguns países, entre os quais a Itália, informaram que precisarão queimar mais carvão se quiserem reduzir as compras de gás natural russo.
A Agência Internacional de Energia (AIE) recentemente reconheceu essa tendência. "Quanto mais rápido as autoridades da União Europeia buscarem se afastar dos suprimentos russos de gás, maior a implicação potencial em termos de custos econômico e de emissões em curto prazo", informou a agência em um relatório na semana passada.
O conflito na Ucrânia está tendo impacto sobre o mercado mundial de carvão de outras maneiras, já que as exportações russas de carvão também foram colocadas em questão. À medida que bancos, seguradoras e companhias de navegação rejeitam a Rússia, os consumidores de carvão na Europa e na Ásia têm de vasculhar o mercado em busca de fontes alternativas de suprimento, o que eleva os preços, conduzindo-os na semana passada a mais de US$ 400 por tonelada, ante US$ 82 um ano atrás.
A esses preços, 2022 promete ser mais um ano de lucros recorde para o setor. A Rússia responde por cerca de 30% das importações europeias de carvão térmico, que é queimado em usinas de energia para gerar eletricidade.
O carvão também continua dominante na Ásia, especialmente na China, a maior emissora de poluentes no planeta. O país continua a construir usinas de energia novas acionadas a carvão, e as emissões cresceram em 4% no ano passado, o que equivale a um terço da alta mundial nas emissões. (Os Estados Unidos não ficaram muito atrás, respondendo por 22% do aumento mundial nas emissões em 2021.)
O aumento na demanda chinesa por energia em 2021, comparado a 2019, foi o equivalente a toda a produção de energia da Alemanha e França combinada. Este ano, Pequim planeja um crescimento de Produto Interno Bruto (PIB) da ordem de 5,5%, o que implica uma nova alta na demanda por energia.
Ainda que a China receba apenas 5% de seu gás natural e 10% de seu petróleo da Rússia, de acordo com dados da IHS Markit, o país não está isolado do choque mundial na energia.
"Se houver qualquer escassez de gás natural, a China pode ter de voltar a recorrer a um aumento em sua produção nacional de carvão –muitas vezes mencionada como uma última linha de defesa pelas autoridades do país", diz Xizhou Zhou, vice-presidente de energia e renováveis na IHS Markit.
Pequim prometeu limitar seu consumo de carvão até o final desta década, o que significa que seu consumo de carvão, e emissões, ainda devem continuar rescendo por alguns anos.
OBSTÁCULOS NO PERCURSO
A despeito desses revezes muitos executivos de energia acreditam que a transição para além dos combustíveis fósseis continua em curso, ainda que com menos rapidez e facilidade do que muita gente esperava.
"São obstáculos de percurso", diz Scott Mackin, sócio diretor do Denham Capital, um fundo de infraestrutura sustentável sediado em Boston. "O ímpeto ainda é forte quanto à transição energética, no quadro geral".
Por trás dos lucros recorde do setor de carvão está uma indústria em declínio estrutural. "O carvão está passando por um salto fantasma, em minha opinião", diz Mackin. "Não estamos vivendo uma era grandiosa na qual o carvão térmico vá se tornar melhor e mais passível de investimento".
O setor de carvão mais amplo em geral concorda –ou pelo menos as empresas europeias e americanas de capital aberto que fazem parte do setor o fazem. A trading de commodities Glencore diz que parte da razão para que os preços e lucros estejam tão altos no momento é o declínio estrutural, que significa falta de investimento em novos projetos de carvão e, com isso, uma queda na oferta.
A Glencore prometeu limitar sua produção de carvão a 150 milhões de toneladas anuais –mas esse número ainda permite uma alta de produção. No ano passado, a empresa produziu 100 milhões de toneladas de carvão, e este ano ela vai minerar cerca de 120 milhões de toneladas, depois de um acordo de compra da parte de seus sócios em uma mina na Colômbia.
Em prazo mais longo, o plano da empresa é reduzir a produção e por fim fechar suas minas de carvão na África do Sul, Austrália e Colômbia nas próximas três décadas e atingir balanço zero entre emissões e absorção de poluentes em 2050. Os planos contam com o apoio de seus grandes acionistas.
"Ninguém está construindo novas minas de carvão. Ninguém está obtendo capital para novas minas de carvão, mas o apetite por carvão continua saudável na Ásia", disse Gary Nagle, presidente-executivo da Glencore, a jornalistas, no mês passado, depois que a divisão de carvão da empresa anunciou receitas de mais de US$ 5 bilhões antes dos juros, impostos, depreciação e amortização, em 2021.
Mas mesmo que a guerra na Ucrânia só signifique uma extensão de curto prazo para a retomada do carvão, ela coloca em risco o cronograma para chegar ao balanço zero – e esse cronograma já é apertadíssimo.
De acordo com o mapa de rota da AIE para o balanço zero, o uso de carvão precisa cair à metade nesta década para que o plano funcione. Enquanto isso, a geração de eletricidade precisa subir em 40% no mesmo prazo, de acordo com o cenário, que envolve reduzir as emissões a zero até 2050 e limitar a elevação da temperatura mundial a 1,5 grau centígrado neste século.
Fazer as duas coisas ao mesmo tempo –elevar a produção de eletricidade e reduzir a uso de carvão– vai exigir um imenso crescimento na energia renovável, especialmente a solar e eólica, e avanços na armazenagem de energia.
Mas no mesmo momento em que o carvão vive um grande retorno, a energia renovável enfrenta problemas. Devido a uma combinação de dificuldades logísticas e de problemas causados por guerras comerciais, nem a energia solar e nem a eólica parecem destinadas a crescer muito este ano, como precisaria acontecer para avanço rumo a um cenário de emissões zero.
Zhou diz que o processo está provando ser "uma transição não sincronizada", já que os renováveis não cresceram o bastante para substituir o carvão que precisa ser removido do sistema. "Há esse período desajeitado, antes que se possa realizar a transição completa para o abandono dos combustíveis fósseis".
Ele aponta para a grande alta na demanda por eletricidade em 2021, quando a economia mundial se recuperou da pandemia. "A demanda realmente surpreendeu a todos no ano passado".
"Os renováveis hoje não são capazes de responder a essas viradas [na demanda por energia] porque nossas baterias de armazenagem ainda não têm a capacidade requerida", diz Zhou. O baixo investimento em combustíveis fósseis também contribuiu para a volatilidade, ele acrescenta.
"O sistema em geral tem menos reservas para encarar esses altos e baixos", diz Zhou. "O conflito na Ucrânia foi mais um desses choques de oferta que testarão a resiliência dos sistemas de energia em transição".
UMA NOVA FORMA DE POLÍTICA
A velocidade com que a transição acontecerá é uma questão não só de economia mas de política. E em termos de negociações sobre o clima, a diplomacia que lubrificou as engrenagens do processo da COP por décadas pode tropeçar por conta da guerra.
O conflito significa que a cooperação mundial quanto à mudança do clima, que necessariamente precisa incluir grandes emissores de poluentes como a China e a Rússia, vai se tornar ainda mais difícil.
Os atos preços da energia podem tornar mais complicado para alguns países colocar em vigor políticas de energia limpa. Em um sinal da política conturbada que cerca a questão dos preços da energia, o líder direitista britânico Nigel Farage lançou um movimento antiecológico na semana passada que pede por um referendo nacional sobre a meta de emissões zero do Reino Unido.
Antes da conferência de cúpula climática COP27, que acontece no Egito no final deste ano, os países deveriam apresentar à ONU planos melhorados quanto ao clima. Os negociadores do clima dizem que isso é especialmente importante para grandes economias emergentes como a China e a Índia, cujos compromissos vigentes com relação ao clima não se alinham à meta de limitar o aquecimento global a 1,5 grau centígrado.
Os sinais de que esses países pudessem melhorar o que se comprometeram a fazer quanto ao clima não pareciam muito promissores mesmo antes que irrompesse a guerra, disse Pete Betts, ex-negociador climático da União Europeia e do Reino Unido nas conversações da ONU. "E parecem ainda menos promissores agora, se considerarmos a largura de banda que será absorvida pela situação da Ucrânia".
Mesmo assim, Betts e outros acreditam que a guerra tenha criado mais urgência para a tarefa de conduzir uma transição para além do petróleo, carvão e gás natural, e que ela possa se provar um ponto de inflexão.
"Estamos vivendo com uma nova forma de política agora, e isso inclui as questões de clima", diz Betts. "Creio que o clima passará a ser parte muito maior da segurança energética".
Se a ideia de que a energia renovável representa "segurança energética" continuar a ganhar força, ela pode criar foco –e direcionar gastos– para a energia limpa, especialmente na Europa, onde isso até agora estava em falta.
"A verdade é que jamais tratamos a mudança do clima como a emergência que ela de fato é, ou da maneira que estamos tratando a guerra da Ucrânia como emergência", diz Van de Graaf. "O paradigma de segurança nacional tem poder de mobilização muito maior do que o paradigma da catástrofe climática".
Fonte: Folha SP