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A cara da Amazônia

UFPA forma sua primeira turma de engenheiros navais. Em seis anos, relação candidato-vaga mudou de oito para 700

Luana Assis
A Universidade Federal do Pará, que há mais de 40 anos vinha cultivando a ideia de criar seu próprio curso de Engenharia Naval, está formando sua primeira turma. O curso, que saiu do papel cinco anos atrás, tem um foco bastante diferente do das únicas duas faculdades do país a oferecê-lo — a Universidade  Federal do Rio de Janeiro e a Universidade de São Paulo —, já que que é direcionado para a realidade do Norte do país. Apesar de se destinar a formar profissionais para o trabalho de concepção e execução de projetos de embarcações, como os cursos de outras universidades, o que o difere dos demais é justamente o enfoque dado aos problemas hidroviários, principalmente os da Amazônia.
Desde a escolha da localidade de Guamá para a construção da Universidade Federal do Pará, decisão tomada pelo então reitor José da Silveira Neto há mais de 50 anos, a criação do curso já era pensada. Havia duas opções: um terreno alagado, à beira do rio, e outro, no município de Ananindeua, afastado do centro da cidade. O reitor decidiu pela primeira localização, desejando que algum dia a  Universidade viesse a ter um curso de Engenharia Naval e levando em consideração que a localização próxima à Baía do Guajará facilitaria o ensino e aprendizado de professores e alunos.
Ao longo das décadas, foram várias tentativas frustradas até que, em dezembro de 2003, a Agência de Desenvolvimento da Amazônia propôs a formulação de uma proposta de implantação do curso de Engenharia Naval na UFPA, garantindo total apoio à sua criação. Em 2004, o atual  reitor da Universidade, Alex Bolonha Fiúza de Mello, expôs o desafio: elaborar um projeto pedagógico que fosse capaz de tirar a ideia do papel. E assim foi. Durante seis meses uma comissão trabalhou no projeto, que foi passando por todas as fases até ser aprovado. O primeiro vestibular foi realizado em 2005 e a primeira turma começou no mesmo ano. Nessa primeira etapa, as condições estruturais eram bastante limitadas e muito esforço foi necessário para reverter esse quadro. “O curso começou desacreditado, mas superou todas as expectativas. Um dos pontos positivos é a qualidade dos alunos. O processo de seleção é muito rígido e os alunos são muito bons”, explica o professor Hito Braga de Moraes, vice-diretor da Faculdade de Engenharia Naval.
Apesar de o projeto ter demorado tanto a tomar corpo, não houve grandes dificuldades tanto antes quanto durante a implementação do projeto. “Não tivemos deficiências críticas, pois todos sempre estiveram dispostos a ajudar. A criação desse curso representa a libertação da Amazônia, que deixou de ser refém da mão de obra do Sudeste do país e passou a ser capaz de formar seus próprios profissionais” afirma o professor Roberto Pacha, diretor da Faculdade de Engenharia Naval.
Para Hito Braga, que é figura fundamental no processo de criação do curso e esteve durante todo o tempo à frente do projeto juntamente com Roberto Pacha, um problema enfrentado no início foi justamente a falta de mão de obra local capacitada para lecionar, o que foi resolvido com a busca de profissionais externamente. Segundo Hito, o curso foi formado, desde o início, graças ao esforço local, com o objetivo de que se formassem engenheiros navais para suprir a demanda da região, principalmente na navegação interior. Ele afirma que a base do conhecimento passado pela faculdade garante aos alunos a capacidade de atuar em diversos segmentos do ramo. “Os alunos adquirem um conhecimento integrado e se tornam aptos a atuar em diversas áreas, construindo navios, entendendo e solucionando os problemas da navegação interior, pois o curso proporciona uma visão globalizada”, avaliza ele.
Na época, a Universidade Federal do Pará fez um convênio com a UFRJ e a USP e todo o conteúdo programático das universidades, assim como as disciplinas, foram copiados à risca. Contudo, além de ter a mesma base dos cursos do Rio e de São Paulo, o curso de Engenharia Naval ainda conta com um diferencial: possui um currículo totalmente direcionado para a realidade da região amazônica, já que, além das disciplinas trazidas da UFRJ e da USP, há outras com foco voltado para a navegação de interior. A espinha dorsal do curso de Engenharia Naval é inspirada nos demais cursos existentes, mas a sua essência é direcionada para a navegação hidroviária de um modo geral.   
Diferentemente dos profissionais formados nas demais faculdades do país — e, por que não dizer, do mundo —, que constroem embarcações destinadas à navegação em alto mar, os da UFPA estudam ainda, além do currículo recomendado pelo MEC e LDB, temas indispensáveis para que se possa construir embarcações adequadas aos rios amazônicos, tais como: obras hidroviárias, hidráulica dos rios e o ciclo hidrológico destes, entre outros.
O perfil vai além dos requisitos para o trabalho em estaleiros e em projetos de embarcações. Com um salário médio de R$ 3 mil, um recém-formado tem a possibilidade de atuar em empresas de navegação, na execução e gerenciamento de projetos de sistemas portuários, na elaboração de estudos científicos que objetivem a utilização racional do transporte hidroviário, na realização de perícias e emissão de laudos e pareceres técnicos, no trabalho de assessoramento e consultoria a empresas, associações e entidades do poder público, no gerenciamento do transporte marítimo e fluvial, controlando o tráfego de embarcações e os serviços de comunicação, além de escritórios de projetos e classificadoras — empresas que certificam se as construções estão ou não de acordo com as normas internacionais — entre outras atividades.
Os períodos são anuais e os alunos, após aprovados no vestibular, ingressam no início de cada ano. São apenas 20 vagas anuais e atualmente há um total de seis  turmas. No primeiro vestibular, em 2005 a procura pelo curso foi de cerca de oito candidatos para cada vaga. Hoje, esse percentual é bem maior: cerca de 700 pessoas se candidataram às 20 vagas disponíveis neste ano. Atualmente, o corpo docente do curso é composto, em sua maioria, por doutores, pós-doutores e mestres do curso de Engenharia Mecânica, curso que tinha uma base muito forte e sólida. Também há professores do curso de engenharia civil e outros profissionais contratados, entre engenheiros navais da própria região e professores trazidos da USP e da UFRJ. Durante os primeiros períodos, os alunos cursam as mesmas disciplinas do curso de Engenharia Mecânica e já a partir do segundo ano começam a ser lecionadas as disciplinas específicas, iniciando por Introdução à Engenharia Naval.
Dos 20 alunos que ingressaram na primeira turma de 2005, nove estão se formando, mas o número relativamente baixo não é por desistência do curso, garante Roberto Pacha: “Na verdade, os 11 alunos restantes estão apenas atrasados e devem se formar nos próximos anos. Alguns tiveram problemas, outros não passaram em uma ou outra disciplina, o que se deve em função da própria dificuldade do curso principalmente”, explica o professor. Quase todos os alunos estão trabalhando e a oferta na área é muito grande. Há de tudo um pouco: profissionais que estão atuando na própria região, outros que foram buscar oportunidades de trabalho em outras regiões, como Fortaleza e Macaé, e até mesmo um aluno que se tornou empresário, trabalhando como gerente com o próprio pai, que é dono de um estaleiro.
O quadro da região, que atualmente ainda sofre com a carência de recursos humanos qualificados na área de engenharia naval, promete mudar. Afinal, um dos grandes entraves ao desenvolvimento e à expansão da atividade econômica na Amazônia era justamente o fato de não existirem entidades aptas a gerarem mão de obra capaz de mudar essa realidade. A oferta existe, faltava apenas uma inciativa como essa. “Os estaleiros estão atolados de encomendas e não estão dando conta. Falta mão de obra na área. A demanda é muito grande e agora começa a ser suprida”, afirma Roberto Pacha. Ainda segundo ele, o objetivo é reter alguns desses talentos que queiram se especializar. “ Temos o plano de esperar para investir em alunos formados no próprio curso e que tenham interesse em lecionar na Universidade. Depois que eles se especializarem e concluírem mestrado e doutorado, iremos aproveitá-los para complementar o corpo docente do curso, que atualmente possui seis vagas em aberto”, explica.
Gabriel Jones Ohana já está no caminho certo. Ele é um dos alunos que se formam nessa primeira turma de Engenharia Naval da UFPA e já manisfestava interesse pela área antes mesmo da criação do curso. “Eu sempre quis atuar nessa área e tinha planos de prestar vestibular para o Rio ou São Paulo. Com a criação do curso aqui no Pará, não precisei me mudar.” Ele reforça, ainda, o quanto o mercado de engenharia naval está aquecido e o enorme potencial de crescimento que tem, tendo em vista que o curso tem muito a contribuir para o desenvolvimento da região.
Segundo ele, os alunos das primeiras turmas tiveram alguns problemas próprios da implementação de um curso novo, como carência de alguns professores e de estrutura física, o que, no entanto, em nada atrapalhou a qualidade de sua formação. “Tivemos alguns problemas no início, mas logo foram solucionados. Fomos buscar profissionais da USP e da UFRJ e ambas foram muito importantes no processo de implementação da faculdade de Engenharia Naval aqui no Pará. Hoje em dia o curso não deixa nada a desejar, pelo contrário, minha formação foi excelente”, garante. Gabriel estagiou, ao longo da sua formação, durante cerca de cinco meses no Estaleiro Eisa, no Rio de Janeiro, e atualmente se dedica em tempo integral ao mestrado em Vibrações e Acústica. Assim que concluir, ele pretende ainda fazer doutorado fora do país e tem planos de se tornar parte do corpo docente da UFPA.
Já para Anderson Iwao Kowada, outro dos formandos, a Engenharia Naval só se tornou uma realidade depois da criação do curso. “Eu ainda não sabia qual profissão seguir, e quando o curso foi criado decidi investir, até mesmo por influência de amigos, que diziam que era um mercado ótimo para se trabalhar. Quando comecei a faculdade me identifiquei e hoje vejo que as perspectivas são muito boas”. Anderson, que estagiou no Estaleiro Amacon, em Belém, e agora está prestes a ser contratado, reconhece que o curso foi primordial para o desenvolvimento da região, já que vai contribuir para a resolução dos desafios locais, assim como para a melhoria das embarcações e de toda a infraestrutura de um modo geral. “Esse é o objetivo profissional que temos. A UFPA está formando uma massa crítica capaz de finalmente poder atuar e resolver esses problemas”, finaliza.
O curso de Engenharia Naval da UFPA foi uma verdadeira conquista para a região e a sua localização é um quesito fundamental, já que a Amazônia possui um enorme potencial que ainda não havia sido explorado. Cortada por grandes rios, a região está localizada em um ponto estratégico em relação à Europa, aos Estados Unidos e à Ásia e conta com aproximadamente 20 mil quilômetros de rios navegáveis. Tal fato é reconhecido por órgãos de apoio à pesquisa e por universidades nacionais e internacionais que investem na graduação, tanto que a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) destinou cerca de R$ 3,5 milhões para o fomento de projetos de pesquisa e a construção de um prédio próprio para o curso. Além disso, o financiamento de um laboratório próprio para o curso também está em andamento. “Deu muito certo o curso. E todos os formandos têm facilidade para se alocarem na área”, finaliza Roberto.


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