Há cerca de dois anos, em um seminário sobre a política industrial no século XXI, tive a oportunidade de assistir a apresentação de Ron Bloom, que havia sido um dos principais assessores do presidente americano Barack Obama para assuntos da política industrial e uma das peças chave na elaboração do "The Recovery Act: Transforming the American Economy Through Innovation", de agosto de 2010.
Em sua apresentação, Bloom buscou estabelecer os nexos entre produção e inovação em um contexto mais complexo do que o usual. Sua crítica voltava-se para a crença, antes dominante nos EUA, de que seria possível ao país concentrar-se exclusivamente em atividades de desenvolvimento tecnológico e transferir o conhecimento para países onde salários e outros custos eram mais baixos para que estes se encarregassem da atividade produtiva. A tese defendida por Bloom era de que a estratégia do "invente aqui e faça lá" adotada pelos EUA nas últimas décadas estava fracassando. Nas suas palavras, "quando um país perde a manufatura, a perda da inovação vem a seguir". E isso ocorreria simplesmente porque mais cedo ou mais tarde a proximidade física entre laboratório e fábrica se mostra decisiva para a reprodução da capacidade inovativa.
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Com essas questões em mente animei-me a construir o Jogo do Conteúdo Local. A figura mostra as possíveis combinações entre inventar e fazer, aqui ou lá. Nela, cada um dos quadrantes expressa uma estratégia nacional distinta. O jogo está em localizar países nesses quadrantes com o fito de definir as diretrizes mais gerais de suas políticas (ou não-políticas) industriais. Evidentemente, quanto mais diversificada e complexa a estrutura industrial de um país, mais inapropriado é enquadrá-la em apenas um quadrante. Mesmo assim, uma vez aceita essa limitação, o jogo parece possibilitar uma estilização interessante.
Ao final, a proximidade física entre laboratório e fábrica se mostra decisiva para a capacidade inovativa
O primeiro quadrante corresponde à combinação "invente aqui e faça aqui". Essa teria sido a estratégia do Japão e posteriormente da Coreia do Sul nos anos do pós-Segunda Guerra Mundial, mas que em pleno século XXI já não encontra mais qualquer espaço de concretização. Há quem sugira que essa é a linha da atual política industrial brasileira, mas isso é claramente destituído de aderência à realidade e deve ser atribuído ou à má vontade ou à má-fé de adversários da ideia de intervenção do Estado nos mercados.
Já o quadrante IV, "invente lá e faça lá", refere-se a uma estratégia que pode fazer sentido para nações pós-industriais, aquelas com níveis de renda per capita tão elevados que possibilitem o desenvolvimento de um exuberante setor de serviços, como a Inglaterra. Também pode ser adotada por países de pequena população muito ricos em recursos naturais, como Austrália ou Chile. Há os que propõem essa estratégia para o Brasil, mas desistir da indústria, que é o seu real significado, pode caber nos países mencionados, mas certamente não no nosso país.
Sobram os dois quadrantes da diagonal secundária. Em conjunto sintetizam a tônica da relação pseudo-simbiótica que se estabeleceu entre EUA (quadrante II, "invente aqui e faça lá") e China (quadrante III, "invente lá e faça aqui") na primeira década desse século e que agora, conforme a abordagem de Ron Bloom, encontra-se sub-judice. Dessas estratégias desdobram-se dois modelos distintos para as políticas de conteúdo local.
O primeiro modelo é inspirado na estratégia do quadrante III. Nele, as empresas entrantes detêm as competências tecnológicas necessárias (inventaram lá). Assim, faz sentido delinear uma trajetória na qual o conteúdo local pode ser fixado em níveis inicialmente baixos, mas crescentes ao longo do tempo desde que seja possível assegurar que a eficiência (competitividade) da produção mantenha-se sempre em patamares elevados. Conceitualmente, esse primeiro modelo corresponde a uma estratégia de nacionalização progressiva da produção, em moldes similares ao tão competentemente realizados pela China. Deve ser entendida, portanto, como parte de uma política de atração de investimentos
O segundo modelo, associado ao quadrante II, define patamares mínimos de conteúdo local (fazer algo aqui) desde que requisitos de eficiência (competitividade) crescentes ao longo do tempo possam ser alcançados como contrapartida. Esse segundo modelo relaciona-se a uma estratégia de criação de competências e deve ser vista essencialmente como parte de uma política de inovação.
No século passado o déficit de competitividade era muitas vezes consequência de insuficiência de escala, enquanto hoje ele decorre quase sempre de insuficiência de inovação. De modo análogo, diferentemente do que ocorria no passado, hoje o ritmo de inovação muitas vezes é mais rápido do que o do aprendizado. Por isso, políticas de conteúdo local que se atenham simplesmente a criar demanda e assegurar tempo para o processo de aprendizado estão fadadas a serem pouco efetivas. Essas duas condições podem ser necessárias, mas dificilmente serão suficientes se não estiverem direcionadas para atividades que tenham real potencial para encadear desenvolvimento tecnológico no território nacional.
Fonte: Valor Econômico/David Kupfer é professor licenciado e membro do Grupo de Indústria e Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ (GIC-IE/UFRJ) e assessor da presidência do BNDES