A Petrobras e outras empresas de petróleo que operam no Brasil enfrentam dificuldades para cumprir exigências de conteúdo local nas compras de bens e serviços acertadas em contratos com a Agência Nacional do Petróleo (ANP). A partir de 2005, na 7ª Rodada de Licitação, o governo fez mudanças na forma de medição do conteúdo local. As alterações tornaram mais difícil, para as petroleiras, cumprir as obrigações contratuais acertadas e, ao mesmo tempo, provar que os bens e serviços foram produzidos no Brasil. O descumprimento do conteúdo local pode levar à aplicação de pesadas multas pela ANP.
O Valor apurou que a Petrobras informou à ANP que, se vier a ser autuada pela agência por descumprimento do conteúdo local, vai entrar com ação contra o fornecedor que deixou de atender o compromisso, repassando a multa. A penalidade poderia chegar a 200% do valor do bem que não teve o conteúdo local atingido.
Os técnicos da ANP identificaram "desconformidades" relacionadas ao cumprimento dos percentuais de conteúdo local de 70 contratos, assinados em 2003 e 2004, no fim da 5ª e 6ª rodadas de licitações, e que estão na fase exploratória. O número equivale a 16% dos 434 contratos em vigor, excetuando aqueles assinados na "rodada zero", quando áreas foram concedidas à Petrobras sem licitação. Na época, não havia obrigatoriedade de conteúdo local.
Dos contratos com problemas, 44 são da Petrobras, 12 da Petrogal, 9 da Petrosinergy e um da Shell, entre outros. No total, existem 749 contratos ativos na ANP. A situação pode se agravar ainda mais quando forem analisadas as obrigações assumidas pelas concessionárias a partir de 2005.
Até 2005, a política de conteúdo local era menos restritiva, segundo as petroleiras. A empresa oferecia um percentual que era declaratório. O concessionário precisava apenas apresentar uma nota fiscal de empresa brasileira com a declaração do fornecedor de que o produto era de origem nacional. O governo avaliava, porém, que não poderia medir esses índices para efeito de fiscalização do contrato de concessão com a ANP. Passou-se a exigir uma certificação feita por empresa independente credenciada pela agência reguladora.
Bandeira da Petrobras, do governo federal e de entidades de classe da indústria, o conteúdo nacional opõe operadores e fornecedores nacionais do setor. O debate refere-se à possibilidade de a ANP mudar regras de conteúdo local a partir da 11ª Rodada de Licitação de novas áreas de petróleo e gás, prevista para ser realizada este ano. A medida interessa às operadoras, amarradas por compromissos assumidos no início dos anos 2000, que estão sendo difíceis de cumprir. Os operadores apresentaram altos índices de conteúdo local como forma de ganhar os blocos ofertados nos leilões, mas agora consideram difícil atingir os percentuais com os quais se comprometeram.
A partir da 7ª rodada, estabeleceu-se que o percentual mínimo de conteúdo local na fase de exploração em águas profundas (acima de 400 metros de profundidade) seria de 37%, e o máximo, de 55%. Assim, da mesma forma que há uma garantia para bens nacionais, há também uma parcela do fornecimento reservada à importação.
De forma paralela aos percentuais fixados, o operador teve que detalhar o conteúdo local por itens. Na proposta, passou a ser necessário fixar percentuais de conteúdo local mínimos por itens e subsistemas, como interpretação e processamento (40%), afretamento de sonda (10%), perfuração e completação (30%) e apoio logístico (15%), entre outros.
Até 2005, um conteúdo local maior poderia garantir a aquisição do direito de explorar um bloco, mesmo que a empresa oferecesse menos bônus de assinatura (dinheiro) do que o concorrente. Com Dilma Rousseff no Ministério de Minas e Energia, a então secretária de Petróleo do ministério Graças Foster, hoje diretora da Petrobras, promoveu as mudanças que estão preocupando as petroleiras.
As operadoras têm interesse na simplificação de uma lista com 63 itens sobre os quais se passou a exigir conteúdo local mínimo a partir de 2005. Naquele ano, foram estabelecidos não só percentuais de conteúdo local gerais para as fases de exploração e desenvolvimento da produção, mas também fixaram-se obrigações por subsistemas, tudo atrelado aos contratos de concessão.
Enquanto se esforça para ser uma indutora da política industrial do governo, a estatal está sendo pressionada no mercado financeiro por causa dos recorrentes aumentos de custos e atrasos nos projetos. Especialistas avaliam que a empresa perdeu a oportunidade, após a crise econômica de 2008, de alugar sondas mais baratas. Segundo analistas, a construção de plataformas flutuantes de produção no Brasil tem custado mais por causa do maior tempo de construção, dada a menor produtividade dessa indústria no país.
O conteúdo local é tabu na Petrobras. Nos últimos meses, a reportagem tentou, insistentemente, falar com a diretoria executiva da estatal, que silenciou. Em encontro casual com o presidente da Petrobras, José Sergio Gabrielli, no aeroporto do Rio, em fevereiro, o executivo afirmou que os diretores "não têm que falar, mas fazer". Ele citou números sobre o aumento do investimento anual da empresa, que "multiplicou por oito" desde 2003, o que vem provocando, segundo ele, conflitos entre os setores interessados em fornecer à Petrobras. Gabrielli também negou atrasos nos cronogramas de produção de navios e sondas.
Magda Chambriand, diretora da ANP, não quis falar sobre mudanças nas regras do conteúdo para as próximas rodadas, mas informou ao Valor que a agência encontrou cerca de 70 contratos em desconformidade com o conteúdo local. "Estamos vendo alguma desconformidade nos contratos da 5ª e da 6ª rodadas, mas não é que as empresas não tenham cumprido 100%. Encontramos algum tipo de descumprimento, seja no percentual global ou em itens individuais", explicou.
A diretora da ANP afirmou que a agência está abrindo processos e apurando para checar a existência de desencontros de informação, mas ressaltou que as empresas têm amplo direito de defesa. Se os problemas se confirmarem, serão aplicadas penalidades, uma vez que não há previsão de cancelamento de contrato. A multa é proporcional à parcela do valor não cumprido, sendo que nos contratos mais recentes chega a 60%.
O advogado Luiz Cezar Quintans disse que existem quatro resoluções da ANP que funcionam como pilar do conteúdo local, mas o que força as empresas a cumprir o conteúdo são os contratos entre a ANP e o concessionário, e desse com os fornecedores. Na visão de Quintans, vai ser difícil reduzir os percentuais nos contratos passados. "A ANP poderá até perdoar ou não impor a multa em processo administrativo plenamente justificado."
Para o futuro, porém, incluindo as áreas do pré-sal ainda não licitadas, o correto, na opinião de Quintans, é diminuir o conteúdo nacional, porque não há tecnologia disponível no Brasil para atender à demanda requerida. Quintans acha ainda que o conteúdo local devia constar de lei.
"Já que é política pública, devia haver lei para estimular o conteúdo, conceituando-o como fomento à indústria e não como uma fórmula de cálculo, um percentual", diz o advogado. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, discorda. Ele avaliou que a legislação atual é "suficientemente robusta do ponto de vista jurídico".
Executivos de empresas de petróleo consideram um risco deixar a ANP arbitrar os casos em que as multas poderiam ser perdoadas. A agência se transformaria em um balcão de reclamações, dizem. Também está claro que a aplicação das multas só vai ocorrer a longo prazo, já que é preciso esperar o fim da fase exploratória do bloco, que pode levar até nove anos.
Na visão de executivos da indústria, a lista de 63 itens funciona como reserva de mercado. Os fornecedores discordam e consideram que sem o "listão" - apelido dado à lista de bens que integram os subsistemas - as compras feitas pelas empresas de petróleo no Brasil, que já são pequenas, seriam ainda menores. "A mudança na lista é um desejo dos operadores e, se isso acontecesse, eles [as empresas de petróleo] voltariam a comprar tudo fora", diz Paulo Sérgio Galpão, gerente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) no Rio.
César Prata, presidente da câmara setorial de equipamentos navais e offshore da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), criticou as contratações de bens e serviços feita até hoje, e que se referem a contratos anteriores à 7ª rodada. Segundo ele, foram concedidos benefícios que incentivaram a importação e, por outro lado, não se estimulou o conteúdo local. "Foi um banho de sangue", definiu.
O Valor apurou que a ANP estuda a possibilidade de fazer mudanças na lista de conteúdo local, mas não vai flexibilizá-la, como quer parte da indústria.
Fonte: Valor Econômico/Francisco Góes e Cláudia Schüffner | Do Rio
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