Afetado pelo redimensionamento da Petrobras após o início da operação Lava-Jato, o setor naval já perdeu mais da metade das 82,5 mil vagas que contabilizava em 2014, ano em que o nível de emprego nessa indústria atingiu seu nível máximo nas últimas décadas. Dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval) mostram que, até novembro, o segmento somava 38,5 mil funcionários, número que caiu a 35 mil em dezembro, quando a Ecovix entrou em recuperação judicial e demitiu mais de 3 mil pessoas de seu estaleiro no Rio Grande do Sul.
A tendência é que as demissões persistam também neste ano, dizem especialistas, diante do plano de desinvestimento da estatal, da perspectiva remota de novos pedidos de sondas e plataformas e da suavização das regras de exigência de conteúdo local na cadeia de óleo e gás definida na semana passada pelo governo.
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Entre os Estados mais afetados pela crise no setor estão Rio de Janeiro, Bahia e Rio Grande do Sul. O primeiro, onde a cadeia é mais diversificada, tem número recorde de empreendimentos parcial ou totalmente paralisados – Estaleiro Ilha S.A. (Eisa), que entrou com pedido de recuperação judicial ainda em 2015, Mauá, Vard Promar e Aliança, os três localizados em Niterói, e Enseada, em Inhaúma, consórcio entre a japonesa Kawasaki e Odebrecht, OAS e UTC, investigadas na operação Lava-Jato.
Balanço feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta corte de 21,3 mil vagas só no Estado entre 2014 e 2016. No país inteiro, o volume de empregos contraiu de 71,5 mil para 43,6 mil entre os dois períodos. O levantamento foi feito através das bases da Rais e do Caged – e, por isso, tem números diferentes daqueles do Sinaval, que colheu dados diretamente com as empresas.
No Rio, trabalhadores demitidos estão há mais de um ano reivindicando na Justiça o pagamento de verbas rescisórias. Essa é a situação do pintor hidrojatista de alta pressão Salvador Chardeli, funcionário do Eisa até junho de 2015. Desde essa época o carioca reclama o pagamento, além da multa pela demissão sem justa causa, de seu FGTS, que, segundo ele, não chegou a ser depositado durante quase três anos de serviço. A demissão formal, ele diz, nunca aconteceu. Os 3,2 mil funcionários receberam uma carta que os instruía a ficar em casa nos dias seguintes e aguardar novo contato. “Eles nunca retornaram”.
Ao contrário da maioria dos colegas, ele não passou muito tempo desempregado. Graças aos cursos extras feitos durante os quase dez anos de carteira assinada no setor naval e à experiência, conseguiu se recolocar no segmento offshore. Hoje, aos 50 anos, é funcionário da Alphatec e trabalha embarcado em uma plataforma da Petrobras 15 dias por mês.
A empresa chegou a abrir novas vagas nos últimos meses, ele conta, já que herdou contratos de manutenção de plataformas que antes eram de empresas maiores, como Odebrecht e UTC. “Eu falo para os colegas fazerem cursos de Huet e salvatagem [para quem trabalha em alto mar], para aproveitarem essas oportunidades, mas muita gente não tem dinheiro para investir em uma qualificação”.
Na Bahia, o estaleiro Enseada Paraguaçu interrompeu as obras ainda em junho de 2015, causando impacto negativo importante no município de Maragogipe. O estaleiro era bastante dependente dos pedidos da Sete Brasil, empresa criada em 2010 para gerenciar o portfólio de ativos que fariam a exploração do pré-sal e apontada pela força-tarefa da Lava-Jato como parte do esquema de pagamento de desvio de recursos descoberto na Petrobras. A Sete Brasil chegou a encomendar 29 navios-sonda, sendo seis do Enseada.
O sindicato da construção pesada e montagem industrial da Bahia afirma que as obras no local chegaram a empregar 4,8 mil em dezembro de 2013 e que há hoje 200 pessoas no espaço, encarregadas apenas da manutenção.
No Rio Grande do Sul, o principal afetado é o município de Rio Grande, onde fica o estaleiro que leva o nome da cidade, construído pela Ecovix, consórcio capitaneado pela Engevix. Em 2014, o setor naval chegou a concentrar 13,2% das vagas com carteira assinada registradas na cidade, 7,5 mil.
Em dezembro de 2016, esse total caiu para 1,6 mil, postos de trabalho ainda mantidos pelo estaleiro Honório Bicalho, do consórcio QGI, formado por Queiroz Galvão e Iesa Óleo e Gás. Em setembro do ano passado, lembra Cristina Vieceli, técnica do Dieese em Porto Alegre, a Petrobras confirmou que manteria as encomendas das plataformas P75 e P77 feitas ao QGI em 2013, garantindo atividade no estaleiro pelo menos pelos próximos meses.
“O problema é que não há novos projetos. Depois que as plataformas forem entregues, é possível que mesmo essas vagas sejam cortadas”, ela pondera. Isso vale também para o estaleiro EBR, na cidade gaúcha de São José do Norte, que por ora conclui a P74 e ainda registra 2,6 mil empregos. O empreendimento é administrado pelo consórcio Toyo Setal, também citado na Lava-Jato.
Na pernambucana Ipojuca, onde estão os estaleiros Atlântico Sul e Vard Promar, no complexo de Suape, o polo naval ainda emprega cerca de 5 mil pessoas, 120 mais do que em 2015. O balanço é positivo, diz a técnica do Dieese, porque o EAS conseguiu fechar no fim do ano passado encomenda de 8 navios com a South American Tankers Company. Já o Vard Promar, além de ter incorporado as atividades de seu homônimo no Rio, desativado no ano passado, está fabricando três gaseiros (navio para transporte de gás liquefeito de petróleo) e dois barcos de apoio.
Diante dos pedidos residuais, do escasseamento de novos contratos e sem o estímulo da Petrobras, principal indutor de seu renascimento na última década, a indústria naval tem perspectiva remota de retomada, avalia o professor de engenharia oceânica da Coppe/UFRJ, Floriano Pires. “O risco é a extinção do setor naval brasileiro”. O especialista, que leciona desde 1975, reconhece que a política que alavancou o setor naval nos últimos anos foi baseada em “decisões equivocadas”, como a concessão de incentivos fiscais e financiamento público sem a fixação de metas de desempenho.
Mas avalia como equivocada a postura letárgica do atual governo, que não tem procurado instrumentos, como o Fundo da Marinha Mercante, para tentar “salvar a parte viável” do que já foi investido. “A ação teria que ser rápida, para não se perder mão de obra qualificada ou as infraestruturas que já foram parcialmente construídas. É um absurdo deixar sonda apodrecer, deixar estaleiro ser tomado pelo mato”.
A indústria naval, ele diz, tem potencial para ser competitiva, mas, assim como aconteceu em países que hoje são potências mundiais no ramo, como a Coreia do Sul e o Japão, precisa de apoio do governo em um primeiro momento. Por isso, ele é a favor de políticas de conteúdo local, desde que não configurem “protecionismo radical”. Contrária às mudanças feitas na semana passada pelo governo nas regras, que resultaram no abrandamento das exigências de conteúdo produzido no país na cadeia de óleo e gás, a Federação Nacional dos Engenheiros estima que ela será responsável pelo corte de outras 5 mil ou 10 mil vagas hoje ocupadas por seus profissionais nos próximos anos, afirma Murilo de Campos Pinheiro.
Fonte: Valor Econômico