Na reunião ordinária de diretoria ocorrida no último dia 23 de março, a Antaq finalmente votou a proposta de resolução a ser adotada para cumprimento do tema 2.2 da Agenda Regulatória Biênio 2020/2021, que objetiva “desenvolver metodologia para determinar abusividade na cobrança de sobre-estadia de contêineres”.
Por maioria de votos a agência reguladora rejeitou a proposta, que abordava basicamente duas questões: a definição da natureza jurídica da sobre-estadia de contêineres e a metodologia para determinar abusividade na cobrança de tal valor diante de casos concretos.
PUBLICIDADE
O pertinente voto condutor foi proferido pela diretora Flávia Takafashi, que ponderou que não há consenso doutrinário ou jurisprudencial acerca da natureza jurídica da cobrança de sobre-estadia de contêineres, de modo que não convinha à agência defini-la, e que os valores cobrados no Brasil estão alinhados com o que se pratica no restante do mundo, à exceção de Xangai. Por essas razões, entendeu que não há elementos que apontem para falha de mercado que justifique uma intervenção regulatória, opinando pela manutenção do status quo.
A imprensa especializada noticiou grande descontentamento por parte dos usuários com a decisão do órgão. Entidades de classe representativas de exportadores e importadores argumentam que a decisão traz insegurança e prejuízos, mantendo uma situação que já perdura “décadas”.
Malgrado as opiniões em sentido contrário, um olhar menos apaixonado sobre o tema indica que a decisão está correta.
Aliás, o simples fato de ser um “problema” de décadas, como referido pelos usuários, já revela que, inversamente ao afirmado, a manutenção do estado atual não gera insegurança.
A legitimidade da cobrança de sobre-estadia de contêineres é há décadas referendada pelo Judiciário brasileiro, que já escrutinou cada milímetro do tema, abordando todos os lados possíveis e imagináveis da questão, desde a sua natureza jurídica até eventual abusividade dos valores praticados.
A bem da verdade, um cenário de insegurança se instalaria se o regulador interviesse na cobrança da sobre-estadia nos moldes pretendidos pela área técnica da agência.
Com efeito, afora os óbvios argumentos jurídicos que surgem da indevida intervenção estatal na relação entre particulares, ferindo o livre exercício da atividade econômica e o pacta sunt servanda, a norma padecia de outros problemas, incorrendo em graves equívocos conceituais e procedimentais.
É relevante abordar tais aspectos da resolução, especialmente em virtude do clamor de associações setoriais para que a agência reveja sua posição.
A resolução inicia definindo a natureza jurídica da cobrança da sobre-estadia de contêineres.
Sobre esse ponto, pertine primeiramente ressaltar o descabimento da pretensão da autarquia.
Não pode o regulador definir a natureza jurídica de qualquer instituto, alterando sua interpretação, simplesmente para alcançar um resultado regulatório preconcebido.
Mutatis mutandis, deve ser aplicado ao caso, analogicamente, a inteligência do artigo 110 do Código Tributário, que veda a alteração de institutos, conceitos e formas oriundas do direito privado para fins tributários; tampouco pode o regulador alterar conceitos consagrados do direito privado para atingir determinada finalidade regulatória.
Tal situação caracteriza, ainda, óbvia usurpação de competências dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos quais cabe definir, respectivamente, em abstrato e em concreto, a natureza jurídica de institutos.
Ademais, ainda que fosse possível a definição de natureza jurídica por meio de resolução de agência reguladora, a conceituação dada pela Antaq para a cobrança de sobre-estadia, reputando-a cláusula penal moratória, é absolutamente incorreta.
A posição contraria décadas de pacífica jurisprudência dos tribunais locais, que de maneira praticamente unânime a entendem como indenização prefixada, em linha com a posição de tribunais estrangeiros que definem a demurrage como liquidated damages. Eventuais posicionamentos em sentido diverso por parte do Judiciário são isolados e pontuais, representando uma insignificância estatística que não pode ser considerada para qualquer fim.
A resolução prossegue estabelecendo o procedimento para apurar a abusividade da cobrança de sobre-estadia, o que é feito em cima da premissa de se tratar de uma cláusula penal moratória.
Com efeito, ao trazer a definição da natureza jurídica logo em seu primeiro artigo, se infere da própria estrutura do texto infralegal que toda a metodologia é desenhada a partir do entendimento de que a cobrança de sobre-estadia é uma cláusula penal moratória.
Sucede que, ao contrário do pretendido, a modelagem oferecida para a apuração de abusividade não encontra suporte na definição da cobrança de demurrage como cláusula penal moratória, mesmo que tal entendimento fosse adequado, o que não é.
Na realidade, o método proposto é a própria negação da natureza jurídica eleita pela Antaq, já que contraria de maneira direta a legislação civil que trata de cláusula penal.
A metodologia propriamente dita é definida entre os artigos 11 a 15. O racional que se extrai destes dispositivos é que, aos olhos do regulador, a apuração da abusividade da cobrança passa necessariamente pela comprovação dos danos sofridos pelo transportador.
Os artigos 11 e 12 mencionam expressamente “dano efetivamente comprovado pelo transportador marítimo ou agente intermediário“.
O artigo 13, por seu turno, traz exemplos de situações que deveriam ser comprovadas pelo transportador, tais como “valores de frete que deixaram de ser recebidos”, “despesas com leasing” e outros “danos incorridos pelo transportador na operação e devidamente comprovados”, enquanto o artigo 14 exige “justificativas adequadas, razoáveis, verossímeis e comprováveis”.
Como se percebe, no procedimento de aferição de abusividade daquilo que a autoridade reguladora reputa como “cláusula penal moratória”, é imposto ao transportador o ônus de comprovar os danos experimentados.
Tal determinação se revela inadequada, haja vista que, em se tratando de cláusula penal, qualquer discussão sobre comprovação e quantificação de danos é imprópria.
Afinal, a estipulação de uma cláusula penal em um contrato se dá justamente para que as partes não tenham que discutir a efetiva ocorrência de dano e o quantum devido a título de indenização.
A cláusula penal já é o preestabelecimento das perdas e danos, incidindo em face daquele que descumprir obrigação contratual no tempo e forma convencionados. Seu propósito “é fixar antecipadamente as perdas e danos, evitando que as partes partam para um tortuoso processo de apuração de prejuízos” (VENOSA, S. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos – 3ª Ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 171).
Uma cláusula penal que exige a prova de prejuízo é uma verdadeira jabuticaba jurídica.
Aliás, mais do que não ser necessário provar, não é preciso sequer alegar prejuízo, como literalmente disposto no caput do artigo 416 do Código Civil.
O parágrafo único do mesmo artigo estabelece a necessidade da prova do prejuízo em um único cenário: se o credor pretender receber algo além da cláusula penal. Ou seja, em um caso concreto, a prova do prejuízo seria cabível apenas se o transportador almejar receber, além da sobre-estadia, uma indenização adicional.
Como se observa, a metodologia proposta atenta contra a essência e a natureza jurídica das cláusulas penais, conforme definido pelo Código Civil.
Se o regulador aquaviário deliberou – equivocadamente, como já dissemos – ser a cobrança de sobre-estadia uma cláusula penal moratória, deve obediência à sua opção, descabendo discussão a respeito da prova dos prejuízos sofridos por parte do transportador, o que é incompatível com a natureza jurídica adotada pela própria norma.
Um outro equívoco do modelo pretendido é não ter em conta que as cláusulas penais, além da função indenizatória, têm também caráter inibitório e punitivo.
A própria Antaq reconhece tal aspecto no Relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) elaborado sobre o tema 2.2, afirmando que “a cláusula penal possui função ambivalente, por reunir, ao mesmo tempo, reforço do vínculo obrigacional, punindo o devedor pelo seu inadimplemento, e a liquidação antecipada das perdas e dos danos”.
Não obstante, a modelagem ofertada pela área técnica da agência se olvida do caráter intimidatório e foca exclusivamente na desnecessária comprovação do dano.
Se a autarquia entende que a cobrança de sobre-estadia é cláusula penal, eventual análise de abusividade não pode se limitar à apuração do prejuízo, devendo também considerar o fator inibitório, a ser expressado em termos monetários.
A norma não contempla – sequer menciona, aliás – essa função punitiva, abrindo margem para subjetividade na análise do tema, o que é de todo indesejável.
Finalmente, existe um último ponto do procedimento desenhado pelo regulador que merece análise.
Ainda que fosse cabível a discussão sobre a ocorrência e a prova dos danos, não há amparo legal para a inversão do ônus da prova determinada pela resolução.
O procedimento a ser adotado pelo interessado em requerer a “apuração de possível abusividade na cobrança de sobre-estadia” está previsto entre os artigos 7 a 10.
O artigo de maior relevância é o 8º, que detalha as informações a serem prestadas ao órgão para a apuração da denúncia. O que chama atenção é a ausência da atribuição ao denunciante do dever de demonstrar ou comprovar a abusividade que será objeto de análise pelo órgão.
Ao contrário, como já visto, os artigos 11 a 14, em inadmissível engenharia reversa, impõem ao denunciado a obrigação de comprovar os danos por si experimentados. Na prática, a autarquia atribui ao acusado o dever de provar a sua inocência.
No ordenamento jurídico brasileiro a regra geral é que o dever de provar cabe a quem alega. A inversão do ônus da prova é medida sempre excepcional, que depende de decisão judicial devidamente fundamentada, conforme arts. 373, §1º do CPC, 818, § 1º da CLT e 6º, VIII do CDC.
Não pode o órgão regulador, em norma infralegal, incumbir o transportador de demonstrar a não ocorrência da abusividade. A boa-fé se presume; a má-fé se prova. Na questão da sobre-estadia, a não abusividade se presume; a abusividade deve ser provada – obviamente, por quem a alega.
Manter a redação atual da norma, em que não se exige a prévia apresentação de evidências da abusividade, poderá resultar em verdadeira fishing expedition (pescaria probatória) contra transportadores marítimos ou agentes intermediários. Sem qualquer indício de abusividade, caberá ao transportador produzir prova de sua inocência.
Como se observa, além das apropriadas reflexões feitas pela diretoria da agência, havia outros argumentos que igualmente embasariam a rejeição da proposta de resolução submetida pela área técnica.
Desde a Resolução Normativa n.º 18/2017, primeira ocasião em que o tema sobre-estadia foi tratado pela autarquia, a Antaq vem realizando a regulação do assunto de maneira correta e responsável, equilibrando adequadamente os interesses e direitos dos usuários com a liberdade econômica que deve nortear a atividade de transporte marítimo.
Espera-se, pois, que a diretoria da Antaq não ceda às pressões e mantenha o seu posicionamento pela rejeição da medida, o que em nada prejudicará o pleno exercício de suas atribuições legais.
João Paulo Alves Justo Braun é advogado, sócio de Reis, Braun e Regueira Advogados