A aplicação da Lei do Pavilhão (bandeira da embarcação) é um tema que gera debates há muitos anos em relação aos trabalhadores marítimos. Desde a entrada em vigor do Decreto 10.671, de 12 de abril de 2021, que promulgou a Convenção sobre Trabalho Marítimo (CTM), a discussão sobre a lei que deve ser aplicada aos trabalhadores a bordo de embarcações marítimas tem sido retomada pelos tribunais trabalhistas. A CTM determina que deve ser aplicada a lei do local em que a embarcação está registrada, seguindo a definição da Lei do Pavilhão.
Tradicionalmente, antes do cancelamento da Súmula 207 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), os tribunais já adotavam a regra costumeira da Lei do Pavilhão, que determinava a aplicação da lei do local de prestação de serviços quando houvesse conflito entre leis aplicáveis ao trabalhador.
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No entanto, após essa mudança, no início da década passada, a jurisprudência majoritária passou a adotar a lei “mais favorável” aos trabalhadores marítimos, mesmo no caso de eles serem contratados no Brasil ou prestarem serviços em conformidade com a Lei de Expatriação (Lei 7.064/1982). Normalmente, a lei trabalhista brasileira é considerada mais favorável ao trabalhador, quando comparada sistematicamente com outras leis, pois prevê direitos e benefícios adicionais ao trabalhador, gerando a interpretação acima.
No caso do trabalho marítimo, porém, o tripulante está prestando serviços em uma embarcação cujo transporte (de pessoas ou cargas) não necessariamente está vinculado a uma só jurisdição. A finalidade do serviço prestado na embarcação é específica e direcionada à embarcação. Por isso que se argumenta que a lei aplicável a esses trabalhadores deve ser exclusivamente a lei do local em que está registrada a embarcação.
Outro argumento considerado é o fato de que a indústria do transporte marítimo internacional possui caráter global, tanto no que se refere às rotas utilizadas quanto à diversidade de nacionalidades da tripulação. Assim, na medida em que o tribunal trabalhista brasileiro determina que deve ser aplicada a lei brasileira a uma pessoa ou grupo de pessoas em detrimento da Lei do Pavilhão, além do desrespeito à regra internacional, há nítida quebra da igualdade no tratamento jurídico dado aos trabalhadores daquela embarcação.
Em junho de 2022, o TST proferiu decisão determinando que a norma internacional prevalece em relação à legislação trabalhista brasileira. Os fundamentos foram: há prevalência dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é necessário que haja igualdade de direitos para os trabalhadores de uma mesma embarcação e que haja uniformidade das condições e dos benefícios aplicáveis à categoria de marítimos.
A promulgação da CTM, em 2021, e a recente decisão do TST sugerem uma possível mudança de postura dos tribunais brasileiros, embora ainda estejamos longe da consolidação de um entendimento jurisprudencial. Ainda assim, as empresas do ramo, em especial de cruzeiros, deverão se atentar sobre o tema, pois essa mudança de posicionamento poderá causar impactos na contratação de trabalhadores, em especial, se forem brasileiros ou prestarem serviços envolvendo a jurisdição brasileira.
Rafael de Filippis (E) é sócio, José Daniel Gatti Vergna e Sofia de Compostela Gomes da Silva Hernandes são advogados do Mattos Filho