A Organização Marítima Internacional (IMO, da sigla em inglês), em Londres, tem uma nova rodada de discussões de medidas concretas para a redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no transporte marítimo. Essas discussões ocorrem no âmbito do compromisso firmado em abril de 2018 pela indústria marítima internacional, que comprometeu-se a reduzir as emissões de gases de efeito estufa pela metade em 2050, em comparação com os níveis de 2008. Esse compromisso – chamado de Estratégia Inicial – prevê a definição pelos países-membro da IMO de medidas a serem adotadas para a descarbonização do transporte marítimo. Hoje, o setor é responsável por cerca de 3% das emissões globais de GEE - o que equivale a mais do que o total de emissões de alguns países desenvolvidos, como a Alemanha, por exemplo.
A preocupação mais imediata, no entanto, está voltada para o cumprimento das metas de redução de emissões de enxofre, já a partir de 1o de janeiro de 2020. Isso porque, de acordo com outro compromisso assumido pelos membros da IMO (IMO 2020), os navios serão obrigados a reduzir suas emissões de enxofre em mais de 80%. Nesse cenário, o tipo de petróleo bruto que o Brasil produz, com baixo teor de enxofre, tende a ser valorizado no mercado internacional.
PUBLICIDADE
Apesar de ser apontado como uma possível alternativa para a redução da emissão de enxofre no curto e médio prazos, o uso do GNL na navegação marítima não é compatível com o atingimento das metas de descarbonização estabelecidas na Estratégia Inicial da IMO. O GNL fornece reduções limitadas de gases do efeito estufa, após contabilizar emissões de metano no seu processo de produção. Ou seja, as emissões de metano na cadeia de produção de GNL - e no próprio motor - são altas e neutralizam os ganhos potenciais na redução de emissões de CO2 pela troca para GNL
O aspecto econômico é igualmente relevante. A conversão de motores de navios existentes para GNL exigiria investimentos significativos. Um estudo da Oxford Institute for Energy Studies divulgado no início de 2019 estima esses custos entre 6 e 22 milhões de dólares, a depender do tamanho do navio. Para novos navios, o argumento é semelhante: embarcações costumam ter longa duração - cerca de 25 anos, às vezes mais, o que as torna investimentos de longo prazo. Em um contexto de evolução de tecnologias de motores e combustíveis limpos, aliado à definição de metas de redução de emissões cada vez mais arrojadas pela IMO, o GNL pode ter vida curta como combustível de transição para redução de emissões de transporte marítimo. Assim, pode não fazer sentido econômico investir em novos navios a GNL, principalmente para navegação internacional, de longo percurso.
De fato, descarbonizar o setor de transporte marítimo não será uma tarefa fácil. O transporte marítimo é a base do comércio internacional, e mais de 80% do transporte de mercadorias é feito por navios. Eventuais mudanças no setor podem ter impacto no comércio global, afetando o equilíbrio entre os países. Há ainda desafios de ordem tecnológica, que envolvem o desenvolvimento de novas tecnologias de propulsão e de novos designs, além da pesquisa de novos combustíveis limpos que sejam adequados à navegação e que possam ser viabilizados comercialmente, em escala global.
No entanto, estudos e experiências recentes trazem grande otimismo à indústria frente aos desafios da redução de emissões GEE em navios. Uma dessas iniciativas foi o lançamento, em setembro desse ano, durante a semana do Clima de Nova Iorque, de uma aliança entre empresas do setor marítimo, de energia e financeiro, com o apoio de governos e organizações internacionais – a Getting to Zero Coalition. A coalizão anunciou o compromisso voluntário de colocar em operação até 2030 embarcações de longo percurso com emissão zero, abastecidas por combustíveis alternativos limpos.
Em outra frente, um estudo lançado recentemente pela empresa de navegação Maersk mostrou que, com base nas projeções de mercado, as alternativas mais bem posicionadas para a pesquisa e desenvolvimento de novos combustíveis para o setor marítimo são o álcool, biometano e amônia. Segundo o estudo, essas três rotas de combustível são as mais promissoras, apresentando projeções de custos relativamente semelhantes, mas diferentes desafios e oportunidades.
Os resultados divulgados do estudo sinalizam uma ótima notícia para o Brasil. Em função de nossa experiência com biocombustíveis — e também da nossa matriz renovável —, o Brasil tem o potencial de prover soluções tecnológicas sustentáveis para a descarbonização do setor de transporte marítimo. Dois dos principais setores de produtos agrícolas podem se beneficiar da atual tendência global em direção a padrões mais limpos de transporte marítimo: biodiesel, produzido principalmente a partir de soja, e etanol, produzido principalmente a partir da cana-de-açúcar. Para que contribuam de maneira para a descarbonização do setor, no entanto, essa produção deve ser sustentável. Essas possíveis vantagens comparativas do Brasil na produção de combustíveis com zero emissões para a navegação são objeto de análise de um estudo comissionado pelo Instituto Clima e Sociedade junto ao Instituto de Pesquisa em Engenharia da UFRJ (Coppe).
De acordo com a Agência Internacional de Energia - IEA, o mercado de combustíveis para navegação hoje é de 300 milhões de toneladas métricas por ano, 100% em combustíveis fósseis — ou 5% da demanda global de petróleo. Isso representa um valor de mais de 150 bilhões de dólares por ano. Esse mercado está prestes a ter um padrão de combustível muito mais limpo já partir do próximo ano, devido aos limites adotados pela IMO para as emissões de enxofre. Diante das metas de descarbonização acordadas em 2018, novas possibilidades de substituição de combustíveis para transporte marítimo deverão surgir. Para viabilizar o alcance dessa meta até 2050 ou antes, é importante que as metas de curto prazo para descarbonização do setor marítimo sejam ambiciosas o suficiente para incentivar as pesquisa e acelerar o desenvolvimento de novos combustíveis marítimos.
Uma coisa é certa: os navios e os combustíveis vão mudar muito ao longo dos próximos anos. A indústria de navegação e o setor de transporte marítimo em todo o mundo terá que se adaptar, e os agentes do setor já começam a pensar quais combustíveis são adequados para descarbonizar. Resta saber como o Brasil irá aproveitar essas oportunidades.
Lavinia Hollanda é diretora-executiva da Escopo Energia e consultora de emissões marítimas do Instituto Clima e Sociedade (iCS). O iCS é uma organização filantrópica que promove prosperidade, justiça e desenvolvimento de baixo carbono no Brasil