Diante da globalização e da crise do financiamento estatal, boa parte dos Estados capitalistas está seguindo o modelo de organização regulatória descentralizada. A maioria deles, como o Brasil, se vale de agências com certa independência frente o chefe do poder executivo.
Nos últimos meses, presenciamos diversas medidas regulatórias com forte impacto nas empresas reguladas. Foi assim na suspensão da venda de novos contratos da telefonia celular e de planos de saúde, respectivamente, pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Diante dessas questões, por que criar agências reguladoras? Esse modelo está consolidado? Estamos diante de algum risco para a institucionalização desse regime?
Tribunais regionais desconsideram peculiaridades da regulação estatal descentralizada
O fator fundamental para a adoção desse modelo foi, e continua sendo, contribuir para que o Brasil seja escalado para o jogo econômico mundial. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a vantagem das agências é que elas podem isolar as atividades regulatórias das considerações políticas de curto prazo e a influência de interesses especiais, públicos das empresas reguladas.
Contribuem para a atração de investimentos estrangeiros, e, sobretudo, visam a demonstração de haver segurança jurídica e compromisso com a manutenção de regras contratuais, sem percalços inerentes aos processos político-partidários.
Foi assim nos governos FHC (que criou nove agências) e Lula (que manteve as nove, criou a Anac e as manteve na Lei de Saneamento). O modelo permanece intacto no atual governo Dilma Rousseff e já se cogita a criação de outras agências.
Por problemas culturais não é fácil, no Brasil, conviverem lado a lado os representantes dos poderes políticos e esses novos entes. Suas funções tocam aquelas clássicas (normativa, executiva e judicante), surgindo superposições ou omissões. Contudo, passados 15 anos da implantação é possível afirmar que o modelo regulatório e os mecanismos de controle das decisões das agências passaram pelo teste institucional.
O Legislativo, apesar de alguns conflitos, não vem sustando atos regulatórios normativos. Pode fazê-lo por decreto legislativo (art. 49 da Constituição Federal).
O Poder Executivo também não reformou importantes decisões regulatórias, mesmo após o posicionamento da Advocacia Geral da União (AGU) ao analisar recurso contra Deliberação da Agência Nacional de Transporte Aquaviário (Antaq) e concluir ser cabível a interposição de recurso hierárquico impróprio para os ministérios em caso envolvendo divergência entre políticas públicas e decisões regulatórias.
O presidente Lula aprovou esse parecer em 13/6/2006, vinculando toda a organização administrativa federal, diante do poder de supervisão ministerial quando os atos e decisões possam suscitar o controle repressivo, quer se tenha por objeto a proteção de direitos subjetivos legítimos, quer o resguardo do interesse público.
Por fim, o Poder Judiciário se curvou à complexidade das escolhas regulatórias, de modo que várias decisões de primeira e segunda instâncias, que substituíam deliberações das agências, foram reformadas quando chegaram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Prevaleceram, em sua maioria, as escolhas regulatórias à luz da denominada "deferência judicial", em que o juiz reconhece suas limitações em determinadas questões técnicas complexas.
Se é possível afirmar que o modelo de agências foi aprovado no triplo teste perante os poderes clássicos, um fato, pouco comentado, pode pôr em xeque o sistema regulatório atual e afetar o "risco Brasil". O Superior Tribunal de Justiça que havia "garantido" o modelo no formato original ao afirmar que o Judiciário não deveria substituir as escolhas técnicas proferidas pelas agências reguladoras, está mudando seu posicionamento.
Constatamos mais de uma dezena de acórdãos em que o órgão deixou de examinar os conflitos envolvendo normas expedidas pelas agências, prevalecendo decisões dos tribunais locais, independentemente se contra ou a favor.
Em relação ao exame de dispositivos de resoluções das agências, o STJ decidiu que a sua análise não pode ser feita naquela corte. Apesar da importância e o impacto gerado nos sistemas regulados, tais normas não se equiparariam às leis federais para fins de interposição de recurso.
O leading case ocorreu no julgamento do REsp 992.800/RS, por proposta do relator Carlos Fernando Mathias, juiz convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região para atuação na segunda turma do STJ. A partir desse julgado, tantos outros seguiram nessa mesma toada.
Mantido esse posicionamento, as resoluções expedidas pelas agências passarão a ter, como última instância, os tribunais regionais, que, em diversas situações substituíram decisões regulatórias por suas próprias escolhas (ou de peritos nomeados), em grande parte sem qualquer fundamento prospectivo ou motivação técnica.
Estamos, portanto, diante de possível risco regulatório no caso de os tribunais locais desconsiderarem, como fizeram em diversos casos no passado, as premissas da regulação estatal descentralizada, em que deve prevalecer a tecnicidade, a complexidade e a visão prospectiva sistêmica.
Fonte: Valor Econômico/Sérgio Guerra
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