Beneficiado pela guerra comercial entre Estados Unidos e China, o agronegócio brasileiro deve sofrer impactos de curto prazo com uma esperada distensão do conflito pelo governo democrata eleito. A expectativa é que, com uma visão mais multilateralista, o democrata Joe Biden tende a retomar o comércio com o país asiático.
Segundo analistas, produtores de soja, carne e açúcar devem ser os mais afetados, porque vinham substituindo exportadores americanos no fornecimento ao mercado chinês. As vendas dos três produtos para o país asiático registraram forte expansão em 2020, com impacto sobre os preços no mercado interno.
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“A única coisa que preocupa [num governo Biden] é uma eventual retomada de negociações entre EUA e China. A briga abriu espaço enorme das exportações brasileiras, e uma retomada sem preparações pode criar um problema”, diz o coordenador da FGV Agro, Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura.
Até outubro, o Brasil exportou para a China US$ 58,4 bilhões (R$ 318 bilhões), alta de 11% ante o mesmo período de 2019.
O país é o maior comprador de soja, carne e açúcar brasileiros. Com a pandemia, ampliou as importações de alguns dos produtos para manter estoques em caso de rupturas nas cadeias produtivas globais. E, com as tarifas impostas aos EUA durante a guerra comercial, o Brasil ocupou boa parte do aumento da demanda.
As vendas de soja para lá cresceram 15,8% no ano. As de carne bovina subiram 87,2%, e as de açúcar quase triplicaram.
“Estranhamente, a guerra comercial teve a curto prazo efeitos benéficos para o Brasil”, diz o economista Mauro Rochlin, da FGV.
“Quando os EUA sobretaxaram chineses, a China sobretaxou a soja americana, o que representou oportunidade de negócios. O Brasil entrou de maneira mais profunda no mercado chinês.”
Por outro lado, o aumento das compras pela China fez as cotações no mercado internacional dispararem, com efeitos nos preços dos alimentos e dos combustíveis no Brasil, levando o governo a zerar alíquotas de importação e a um inusitado aumento nas compras de soja pelo país.
Embora democratas tenham histórico mais protecionista do que republicanos, especialistas têm a avaliação de que seu governo se apoiará menos em decisões unilaterais do que o de Donald Trump, o que deve abrir portas para a resolução de conflitos externos.
“Biden guarda maior respeito a instituições multilaterais, negociações comerciais com Europa e OMC e mesmo temas discutidos na ONU”, afirma a cientista política da UFRJ Ariane Roder.
“Biden vai voltar para a OMC e vai se entender via OMC. Pode ter viés circunstancial negativo [para o agro brasileiro], mas não é coisa permanente”, pondera Rodrigues. Segundo ele, o agronegócio brasileiro terá que se reposicionar em busca de novos mercados em caso de solução do conflito entre as duas potências.
Empresários do setor temem ainda que diferenças ideológicas entre Jair Bolsonaro e Biden possam prejudicar as vendas para os EUA, além de travar acordos comerciais em negociação pelo Brasil.
O principal ponto de preocupação é a agenda ambiental, um dos focos do programa de Biden, que falou sobre a Amazônia algumas vezes durante a campanha eleitoral —críticas respondidas pelo presidente brasileiro com a bravata sobre “pólvora”.
Nesse sentido, os produtores de soja preferiam a reeleição de Trump, com medo de pressões sobre a produção brasileira. Em entrevista em setembro, o presidente da Aprosoja (Associação Brasileira dos Produtores de Soja), Bartolomeu Braz Pereira, chegou a criticar Biden por “fazer política” com o discurso sobre a Amazônia.
O embaixador Rubens Barbosa disse na semana passada que a reputação brasileira é abalada por práticas ilegais como queimadas, garimpos e pressões contra indígenas.
“Declarações do governo e ações concretas criaram uma crise na percepção externa do Brasil. Gradualmente fomos perdendo credibilidade”, disse Barbosa no Enaex (Encontro Nacional de Comércio Exterior), que reuniu empresários exportadores brasileiros que destacaram a necessidade de mudança de tom em relação ao meio ambiente e aos EUA.
Em discurso de abertura do encontro, Bolsonaro prometeu relações comerciais “sem viés ideológico”, mas voltou a defender o desenvolvimento econômico da Amazônia.
“O governo Bolsonaro precisa se reposicionar, diminuir carga discursiva ideológica no campo da política externa e tentar aproximação pragmática com o governo Biden, tendo em vista a importância que esse parceiro tem”, concorda Roder, da UFRJ.
O agronegócio brasileiro não tem contenciosos nas relações comerciais com os Estados Unidos, diferentemente do que acontece com os setores de aço e alumínio.
Mas há um conflito em relação ao setor de açúcar e etanol, depois que Bolsonaro isentou de tarifas cota de importação do combustível produzido nos EUA sem a esperada abertura às exportações de açúcar brasileiro àquele país.
Embora esperem maiores incentivos ao uso de etanol nos EUA após a posse de Biden,
produtores brasileiros não veem grandes chances de que a contrapartida seja adotada, o que manterá as exportações para o país inviáveis. Por isso, cobram mudança de atitude do governo sobre o tema.
“Por que vamos isentá-los no etanol se o açúcar de fora tem que pagar tarifa de mais de 100%? Vamos falar de livre mercado, mas em letras maiúsculas”, afirma o presidente da Unica (União da Indústria de Cana de Açúcar), Evandro Gussi.
Fonte: Folha SP