O atual programa de concessão de portos, lançado pelo governo federal, tem gerado elogios, críticas pontuais, mas também um silêncio quase generalizado na comunidade portuária, seja porque há desconhecimento sobre os benefícios do programa, seja porque há simplesmente resistências culturais e até mesmo preconceitos contra as privatizações em geral e no setor portuário em particular.
Somado a tudo isso, temos o fato que o Brasil se acostumou a avaliar a opção pela privatização com base nos resultados financeiros – ou seja, se a empresa estatal gera lucro, não precisa ser privatizada; ao contrário, se os resultados são negativos, a solução seria a privatização. E, no caso, algumas autoridades portuárias, de fato, têm dado lucros expressivos.
O critério do lucro sem dúvidas é importante, principalmente quando envolve o erário, mas não deveria ser o único fator determinante para a tomada de decisão sobre privatizar ou não uma empresa estatal. Isso porque há estatais que geram lucro e ainda assim devem ser privatizadas, e outras em que, apesar dos resultados negativos, justifica-se a continuidade do controle pelo Estado.
Parece-nos que o critério mais importante e que deveria se sobrepor a todos os demais é a qualidade dos serviços que estão sendo oferecidos à sociedade. Os portos são intrinsecamente relacionados ao desenvolvimento nacional. Numa economia globalizada, um país que não disponha de um setor portuário pujante não terá condições de se desenvolver. Assim deve-se questionar: (i) se o atual modelo portuário do Brasil atende às demandas dos usuários; (ii) se os problemas que veem surgindo em função do crescimento na movimentação de cargas estão sendo resolvidos a contento; e (iii) se as tarifas cobradas são compatíveis com os padrões internacionais.
Este pequeno artigo busca responder a essas questões tomando por base o modelo de desestatização da Codesa – Companhia Docas do Espírito Santo, escolhida pelo governo federal como a primeira de uma série de outras privatizações de autoridades portuárias que advirão seguindo o padrão básico adotado naquele estado.
Breve retrospectiva regulatória
Em uma rápida retrospectiva, pode-se dizer que o setor portuário brasileiro vem passando por um processo lento e gradual de transferência das atividades portuárias para o setor privado. Esse processo iniciou-se com a Lei 8.630/93 (Lei de Modernização dos Portos) que instituiu, dentre outras medidas, as operações privadas em terminais públicos, a possibilidade de transferência da administração do porto para uma concessionária privada, e a criação de terminais de uso privativo (TUP).
Posteriormente, veio a Lei 12.815/13 que reforça e deixa mais clara a possibilidade de a administração do porto vir a ser exercida por uma concessionária, que pode ser privada, cria o divisor de regimes jurídicos – público e privado – com a poligonal a delimitar a área do porto organizado, e, por último, dispensa os terminais privados de terem “carga própria”.
Merecem ainda destaque as inovações trazidas pela minirreforma portuária com a Lei 14.047/20, que pavimentou o caminho para as desestatizações. Essa lei inova ao autorizar: (i) que os contratos celebrados entre a concessionária e terceiros, inclusive para exploração de instalações portuárias dentro das áreas públicas, nos limites do porto organizado, sejam regidos pelas normas de direito privado, sem prejuízo das atividades regulatórias e fiscalizatórias da ANTAQ; (ii) autoriza a dispensa de licitação de arrendamento de área dentro do porto organizado pelo concessionário; (iii) permite a possibilidade de realização de contratos de uso temporário de áreas e instalações portuárias com o propósito de criar condições para que os interessados invistam seu capital de forma mais célere; e (iv) tornou mais claras as diferenças entre os conceitos de arrendamento e de concessão.
Apesar dos avanços regulatórios dos últimos anos, continuamos com problemas graves que o atual modelo portuário não tem sido capaz de resolver.
Vejamos alguns exemplos de pontos negativos do atual marco regulatório portuário.
Pelas regras atuais, a concessionária pública está dispensada de consultar os usuários e a comunidade portuária sobre programas de expansão e investimentos. Por exemplo, se a docas desejar alterar o PDZ (Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do Porto) ou a Poligonal delimitadora da área do porto organizado, envia requerimento para a Secretaria dos Portos em Brasília e essa, se estiver de acordo, autoriza. O caráter monopolístico da decisão se tornou ainda maior após a retirada das funções deliberativas dos CAPs.
Com relação aos TUPs e aos terminais arrendados localizados dentro da área do porto organizado, hoje as duas figuras desenvolvem suas atividades sem nenhuma preocupação com a possiblidade de ocorrência de conflitos decorrentes de suas respectivas atividades. Isso é inadmissível se o que buscamos é a promoção de um modelo portuário onde todos os prestadores de serviços possam executar suas atividades de forma harmônica de modo a que os donos das mercadorias possam ser mais bem atendidos. O atual sistema não promove essa harmonia.
Há dificuldades imensas em ocupar áreas ociosas dentro dos portos por conta do regime jurídico, que exige estudos prévios, licitação, regulação e controles de múltiplos organismos estatais tais com TCU, AGU, Ibama, além da própria Antaq. É verdade que existem instrumentos para contornar com limitação, em alguns casos, essas dificuldades, mas, na prática, não são utilizados como os chamamentos públicos e os arrendamentos simplificados.
Afora os aspectos jurídicos, há as questões políticas que provocam mudanças nas regras e solução de continuidade nos planos de investimentos; o que era prioritário em um governo pode não ser prioritário no outro. Isso gera insegurança jurídica que tem o único condão de afugentar os investidores.
A realidade prática dos portos brasileiros
As companhias docas no Brasil têm uma história marcada por captura política e que, por sua vez, tem gerado ineficiências e transferências dessas ineficiências para as tarifas. Como resultado, os donos das cargas e os terminais arrendados acabam pagando a conta decorrente das deficiências do sistema.
A verdade é que, por conta do emaranhado regulatório e dificuldades políticas, as companhias docas não conseguiram acompanhar o ritmo de investimentos que a crescente movimentação das cargas requer, nem tampouco criar um modelo de governança refratário a ingerências políticas, apesar da existência da Lei das Estatais que criou um modelo que exige profissionalização, mas que na prática não vem sendo observado. Isso traz sérias consequências negativas às operações portuárias.
Citamos a seguir alguns exemplos para ilustrar as deficiências geradas pelo marco portuário atual.
O terminal de Itapoá em SC, levou 11 anos iniciar as operações; Vitória passou 20 anos sem dragagem; Santos, o maior porto da América Latina precisa, em muitos casos, esperar a maré subir para que o navio deixe o porto, sem citar a necessidade do derrocamento no canal de acesso que vem sendo reclamado pela comunidade portuária há mais de 15 anos e sem solução até o momento. E por último, apenas para ficar em alguns exemplos, tem-se notícia que um simples aditivo em contrato de arrendamento em Santos levou 4 anos para ser aprovado. Inacreditável!!
Podemos fazer uma analogia dizendo que os portos brasileiros hoje equivalem a uma Ferrari que é colocada para trafegar em uma estrada esburacada de barro. Tarefa injusta para esse veículo. Em resumo, os portos contam com excelentes terminais arrendados, mas o entorno funciona com um freio de mão que impede o atendimento satisfatório da demanda do crescimento da movimentação as mercadorias.
Muito provavelmente muitos dos problemas encontrados nos portos brasileiros não existiriam ou seriam muito menores caso a sociedade tivesse maior participação no processo decisório.
Novo cenário a partir da desestatização
Os comentários a seguir são realizados com base no que ocorreu na desestatização da Codesa, indicando o que provavelmente ocorrerá nas demais privatizações, respeitando-se as particularidades de cada porto. É natural esperar que as regras básicas sejam mantidas nas demais privatizações, uma vez que o modelo foi e está sendo elaborado pelo BNDES.
É fato que, em abril passado, o Fundo de Investimentos em Participações Shelf 119, liderado pela Quadra Capital, venceu o leilão de privatização da Companhia Docas do Espírito Santo (Codesa).
A empresa vencedora adquiriu a Codesa com todos os seus ativos e passivos. Essa nova empresa passará a ser a concessionária dos Portos de Capuaba, Vitória e Barra do Riacho durante o período de 35 anos e mais 5, excepcionalmente, período no qual auferirá receitas e cumprirá com obrigações de custeio e investimentos. Se o governo, por exemplo, mudar de ideia e quiser, na remota hipótese, daqui a 35 anos retornar ao modelo de concessão pública, deverá criar outra estatal para essa finalidade.
O negócio envolveu o montante de R$1,321 bilhões e mais compromissos de investimentos de R$ 855 milhões, acrescido de uma outorga variável correspondente a 7,5% da receita bruta durante todo o período da concessão.
Como resultado, os portos de Capuaba, Vitória e Barra do Riacho eram portos públicos geridos por uma empresa estatal; agora continuam públicos, mas, passam a ser geridos por uma concessionária privada.
Em síntese, as funções administrativas passarão para o agente privado, mas os portos continuam públicos. E não poderia ser diferente em virtude dos artigos 21 e 22 Constituição Federal que estabelecem, respectivamente, que o setor portuário é da competência da União a quem cabe, inclusive, legislar a respeito.
Deve-se questionar o que muda para os usuários e para os donos das cargas a partir do novo modelo privado. Segundo a minuta do Contrato de Concessão, as mudanças serão as seguintes;
1 Todos os contratos firmados com a antiga estatal Codesa serão adaptados, em um prazo de 6 meses, para passar a prevalecer as regras de direito privado. Em termos práticos, haverá uma verdadeira privatização da gestão dos contratos portuários. Isso irá facilitar enormemente aditivos e negociações futuras que passarão a ser realizadas diretamente entre o arrendatário e a empresa (privada) concessionária. Por outro lado, para os arrendatários que não desejarem alterar os termos e condições dos contratos de arrendamento, ainda assim, tais contratos passam a ser privados, com a exclusão das cláusulas exorbitantes que são aquelas que conferem à Administração Pública posição superior à outra parte. Isto significa uma diferença considerável em relação ao modelo atual.
2 Estabelecimento do Código de Conduta contendo diretrizes e regras claras para negociação com os interessados que desejarem explorar as áreas do Porto. O Concessionário deverá minutar esse Código e submeter ao governo, em um prazo de 18 meses após a assinatura do contrato de concessão. O MInfra terá 30 dias para avaliar e deliberar a respeito. Algumas das diretrizes, entretanto, já foram estabelecidas pelo TCU.
3 A concessionária terá liberdade para negociar o arrendamento de novas áreas no Porto sem necessidade de licitação, tudo de forma mais rápida. Mas essa liberdade não será ilimitada e há mecanismos para coibir e prevenir abusos de poder econômico. Caso haja mais de um interessado, o concessionário deverá seguir o Código de Conduta que irá fornecer, como acima citado, as diretrizes para dirimir eventuais conflitos. As áreas disponíveis devem ser divulgadas no site da Concessionária e a Antaq pode determinar que uma determinada área entre na negociação e, no limite, em casos extremos, pode até tomar a negociação para si. Em resumo, não haverá licitação e sim uma escolha com base: (i) em critérios comerciais; (ii) adequação ao PDZ; (iii) conformidade ao contrato de concessão; (iv) submissão às regras da Antaq; e (vi) observância ao programa do MInfra.
4 Possibilidade para o Concessionário firmar contratos de uso temporário para atender a demanda de cargas cujo mercado ainda não se encontra consolidado.
5 Maior controle social sobre as atividades portuárias com vistas a atender a função social do porto. A Concessionária será obrigada a consultar o CAP, os terminais privados (TUP´s) e o Município, toda a vez que desejar alterar o PDZ, a poligonal, e o regulamento de exploração do porto. Essa obrigatoriedade, frise-se, hoje não existe. O CAP nem tampouco os TUP´s, por exemplo, terão poder de veto, mas ficará muito difícil para o concessionário convencer o MInfra a aceitar seus planos na hipótese de parecer contrário de alguma dessas instituições. No caso do TUP, justifica-se a necessidade de consulta para evitar conflito nas operações, por exemplo, instalação de um terminal de minério de ferro ao lado do Terminal de celulose (Portocel) em Barra do Riacho no ES.
Apesar da ampla liberdade para o concessionário privado, ressalta-se, como acima dito: o capital da Codesa foi vendido, empresa hoje é totalmente privada, mas se submete às atividades regulatórias e fiscalizatórias da Antaq.
6 A fim de evitar eventual conflito de interesse, será permitido à Concessionária ter um limite máximo de 15% de participação acionária de qualquer operador ou 40% se forem dois ou mais. Além disso, os operadores não poderão participar do controle de capital da Concessionária.
7 Custos em geral tendem a diminuir para os usuários em função da maior racionalização na ocupação das áreas portuárias; maior oferta de serviços; elevação de concorrência entre os prestadores de serviços e consequente redução nas tarifas. Sem contar na elevação do controle social sobre as atividades no porto.
Antes de finalizar, gostaríamos de chamar a atenção para a atual composição do CAP, conforme estabelecida pela Lei 12.815/13, não para falar sobre os poderes do CAP, e sim para comentar sobre sua composição. Na presente distribuição dos assentos no CAP, para o Bloco da Classe Empresarial, ou seja, os prestadores de serviços (service providers), constituído pelos arrendatários de instalações portuárias e operadores portuários, foram designados 3 representantes. Já para os usuários donos das mercadorias e consignatários de cargas, 1 único representante. Essa desproporção causa desequilíbrios, prejudicando o propósito do controle social sobre os portos, como almejado pelo programa de privatização das concessionárias portuárias. Todos deveriam ser ouvidos de forma igualitária para que se possa atingir o consenso satisfatório entre os atores intervenientes das atividades portuárias.
Em conclusão, o programa do governo deve ser aplaudido. Em um recente evento, o presidente de um grande terminal portuário arrendado de contêineres em Santos disse esperar que a revolução positiva ocorrida com a Lei 8.630/1993 se repita agora com o programa de desestatização dos portos brasileiros. Ele tem razão e tudo indica que a privatização dos portos trará ainda maiores e melhores mudanças para o setor portuário inaugurando uma nova fase para os operadores e usuários dos portos.
Elias Gedeon é Engenheiro Civil, Economista, Advogado e Conselheiro AEB/CAP
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